sábado, setembro 30, 2017

O tempo da ternura

Dava pra sentir o cheiro dali. A voz veio da cadeira na fileira atrás da minha e o hálito alcançou meu nariz - tocou a pele do pescoço, a parte descoberta do ombro, os fios de cabelos que sobravam do rabo de cavalo alto, impregnou nos brincos grandes de formas geométricas. Era uma correção filológica, mas eu sentia e ouvia respiração ruidosa já há alguns minutos na cadeira atrás da minha, indicando que estava muito próximo.
Mas nem era exatamente sobre isso que eu pretendia falar, só que não consigo distinguir todas essas cenas, separá-las, torná-las individuais. São um embolado, um emaranhado de lembranças de eventos diferentes: as mãos grandes, brancas, limpas, pousadas sobre a mesa, os braços fortes que, um dia descobri, quase não têm pêlos. Minha própria mão direita tocando outro braço igualmente forte, um gesto irrefletido, denunciador, logo depois de separar do abraço genuinamente empolgado que recebi, um gesto que desmascarava minha vontade de prosseguir em contato. A perplexidade ao reconhecer dois seres muito parecidos sentados lado a lado. A sensação de fim de temporada, de ciclos se encerrando não só para mim, mas para os que me são próximos, e de novos personagens surgindo. Uma história, uma foto, a pensabilidade agindo: eu quis dizer tome cuidado, eu quis dizer observe, espere, cuide para não se magoar nem magoar os outros, mas que sei eu sobre certos sentimentos, sobre essas mitologias individuais? Então eu nada disse, e pensei, e sigo pensando e tentando organizar argumentos, aplicando a mim mesma o recado: tome cuidado, observe, espere, cuide para não se magoar nem magoar os outros.