sábado, outubro 31, 2015

A linguagem dos compromissos

"Tempo a gente tem o quanto a gente dá": o pretexto da falta de tempo, batido, sobre o qual se apoiam as não-vontades. A linguagem dos compromissos é inevitável - quem irá desmenti-la? Quando um se diz ocupado, o outro aceita. Mas cabe, sim, a desconfiança, não pelos motivos, que não me interessam, mas pelo significado da ausência. Na real, ninguém tem tempo, a gente arranja tempo para as coisas que são importantes. Problema é quando me sinto sempre arranjando tempo, escarafunchando os horários pra fazer caber uma noite juntos, e não há reciprocidade. Aí é sinal de algo errado e hora de pular fora. 

sábado, outubro 17, 2015

Tornar-se aquilo que se via no outro

Um exercício de paciência, de confiança, de esperança, de disponibilidade. Não é dom ou talento - é esforço, atenção, pensamento. Ensinar é uma escolha, uma atividade, não é algo dado, presenteado de cima ao nascer. Ao menos não para mim.
Hoje, enquanto cozinhava, me lembrei de um episódio ocorrido há uns quatro anos: encontrei no mercado um colega que à época era professor e encerrara o trabalho naquele dia; morávamos perto, fomos embora juntos e muito provavelmente por educação ele me chamou para subir no seu apartamento. Na hora não pensei na pertinência do convite porque tinha uma queda gigante por ele, mas tão logo entramos, percebi a fome que o dominava, aquela fome que não deixa pensar, falar, só deve ser urgentemente saciada. Sentado à minha frente comeu vorazmente enlatados diversos: milho, ervilha, atum ou sardinha, todos misturados entre gemidos de satisfação, um prazer quase sexual que, para falar a verdade, não cheguei a presenciar nele outra vez - nem mesmo quando tempos depois chegamos ao ato em si.
Pois que então nessa sexta-feira, enquanto preparava minhas aulas, me peguei abrindo latas de comida e misturando tudo junto a alguns legumes. Um estalo na mente e de repente eu era ele ali: professor particular, cursando mestrado, deslocando-se pela cidade durante a semana, engolindo alguns sapos e questionando a si mesmo. Eu percebi hoje, nitidamente, o quanto naquela época este modo de ser me fascinava, tão solto no mundo, sem CLT, quase sem patrão, sorvendo os teatros de São Paulo volta e meia com algumas cervejas e uma cabeça muito aberta. Me tornei o que admirava. E continuo a admirar o que agora sou?

quarta-feira, outubro 14, 2015

O ato de nomear

O escritor é, me parece, aquele cara que nunca parou. Nos idos 2012 ele já escrevia, talvez tivesse escrito desde todo o sempre de sua existência até aquele momento, em 2012, a partir do qual sua escrita e existência passaram a existir para mim. E depois de 2012 ele prosseguiu: volta e meia me surgia seu nome em notícias que eu não procurava, mas saltavam no computador. O escritor é, apesar de eu não o ter achado super genial pelo pouco que eu li. A bem dizer, achei raso, apesar do verniz cultural ali presente, mas quem sabe eu me surpreenda. O fato é que: ele é. Carrega um título, entrou na seleta lista dos caras relativamente conhecidos, algo meio underground que - por isso mesmo, diriam - deveria representar uma grandiosidade, aquela dos escritos nunca reconhecidos. Mas para além disso, me lembro dos dias de breve convivência e tenho um ímpeto, uma intuição, de que algo há de surpreender. Era um cara cheio de ideias boas e muito simples. Deve ser que seu romance, mesmo que não biográfico, possa portar alguma coisa assim também.

terça-feira, outubro 13, 2015

Reconciliação

Eu já não me lembrava de alguns apelidos, olhei para algumas pessoas com estranhamento - alguns mais gordos, mais velhos, com o rosto marcado pelo tempo. Mas eles, o centro da reconciliação, lembravam de tudo: olhavam as fotos, compartilhavam lembranças e sensações que nunca saberemos ao certo como eram. As casas antigas onde moraram, as roupas daquela época, a pobreza absurda, as baratas que pairavam à noite. Fiquei olhando minha mãe (re)construir sua história, como ela mesma disse, junto do irmão outrora afastado. As fotos rodaram de mão em mão, os filhos do meu primo conheceram imagens da avó e da bisavó em um tempo longínquo que habita recordações quase soterradas: mas alguém puxou as lembranças para fora, pra superfície do presente, e de repente estávamos todos num churrasco de domingo tentando superar os anos, as diferenças, pra ver se dá pra reatar os laços. Aí eu me toquei de que não só eles estão diferentes, nós somos outros - o tanto que nossa vida mudou desde então! Foi um bom domingo. Presenciei um momento como os que costumo ler: a família, sendo a última unidade política moderna, se representa de variadas formas no romances familiares, quiçá meus preferidos, sobretudo nos conflitos. E nas reconciliações.

sábado, outubro 03, 2015

Grão e pão

Duas alunas cancelam a aula na mesma semana por falecimento de pessoas próximas. No mesmo local pergunto à secretária, que estivera afastada, como estavam as coisas; é uma mocinha gentil e muito bacana e perguntar se estava tudo bem foi uma forma de dizer que tinha notado sua ausência. Ao que ela me responde: "agora sim. É que estou gestante". 
(Percebe? Ciclos e renovação)
Sorrimos, conversamos um pouco sobre maternidade e as mudanças no corpo. Saí de lá pensativa, intrigada: algum dia as coisas existirão sem que a gente exista, como já existiam antes mesmo de que nós existíssemos. Imaginar a vida antes de nosso nascimento ou no pós-morte - como é possível? Construir uma narrativa de algo no qual nossa existência e consciência não estavam e não estarão presente - como fazer isso?
Vida e universo "estendem-se infinito, imenso monolito".