sábado, dezembro 19, 2015

Sujeito de sorte

Suspeito que a vida seja uma questão de sorte. 
Nem sempre o trabalho garante as contas pagas; não são poucas as pessoas que conheço que muito trabalham e têm pouca estabilidade financeira. A maioria não quer grandes coisas, sequer quer "coisas", assim, no plural; muitas eu sei que só gostariam de trabalhar menos e ter mais tempo, ou um cantinho próprio para descansar com a garantia de poder estar ali no próximo mês. 
Da mesma forma nem sempre gostar é suficiente para ficar juntos ou garante que tudo fique bem. Nem sempre a boa intenção garante uma recepção justa e positiva do sentimento; nem sempre demonstrar carinho garante que a pessoa ache importante recebê-lo.
Nem sempre o esforço assegura o sucesso, o que quer que isto signifique. 
Nem sempre se alimentar bem e fazer esportes garante a saúde.
E o bom tempero nem sempre garante um bom prato.
Penso um pouco e parece que: não acredito tampouco no acaso ou em deus como essa entidade que se usa para justificar as coisas que não nos são favoráveis. Em geral as coisas ocorrem como uma resposta às nossas ações, mas há fatores e fatores, e o conjunto destes fatores nos guia no presente. Não acho que exista finalidade regendo nossos dias, um destino. A sorte acontece ou não nos momentos. 26 anos atrás tive a sorte de nascer numa família maravilhosa; essa sorte ocorreu em outros momentos, quando fiz grandes amigos, conheci pessoas especiais, quando a filosofia entrou na minha vida. 
Se não há destino nem acaso nem deus nem o diabo nem bem nem mal, o que existe para além de nós? Suspeito que haja um grande nada e tudo pela frente. 

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Fora de questão

Sinto um cansaço ancestral, o corpo se esgotou, a mente está num estágio de devaneio. Sigo entorpecida; tenho satisfações, lapsos de bom funcionamento, resultados recompensadores, mas desgostos profundos - o problema nem é a rejeição, mas a transformação da pessoa antes querida numa figura de arrogância e de reforço negativo. Me explico: não quero o que me faz mal, o que faz questionar o que sou, minha capacidade e meu valor; aceito de bom grado a crítica e a preferência por aquilo que não sou, mas quando isso colocado de modo a me fazer sentir pequena, boba, confusa, errada e feia, nada de bom isso me acrescenta. Por momentos o trabalho me forçou a ter lucidez enquanto mentalmente eu estava deitada em posição fetal, questionando todas as escolhas feitas há tanto tempo e concluindo que só cheguei a este ponto porque tenho me mantido num caminho que não é o meu e que deve ser mudado. 
Mas tenho andado pelas ruas atenta. Há vida, crianças, cachorros. Foi um ano bom. Alguém que não vejo há tanto tempo espera por mim. Jogo os dados, rimos todos enquanto ensino e aprendo; nunca aprendi tanto quanto agora, que ensino.  

segunda-feira, novembro 30, 2015

Tentativas de desvendar o sentimento

Sinto dizer, mas não existe a chave, o segredo. As relações - todas elas, inclusive as sexuais - não cabem em manuais de o-que-fazer ou o-que-não-fazer. É descoberta, observação, reação: se arrepia, se faz sorrir, se provoca carinho, se faz gemer, implorar por mais, estamos no caminho certo. Não é? De resto, há divergências. Como classificar num manual o que em algumas pessoas ou em algumas situações causa excitação? Haveria o não-se-deve-fazer universal? Sexo é espontâneo. Não é roteiro, não é pornô. Pornô é sequência de posições - onde as pessoas não se tocam, a não ser nas partes pudendas - que acaba com gozada na cara. Não quer dizer nada isto? Não significa que o sexo acaba quando o homem chega ao orgasmo? Entre pessoas cientes do que fazem, sexo é de foro íntimo, mas o que baseia nossa ideia de sexo? 
Eu gosto tanto, tanto de você, como provavelmente nunca gostei de ninguém, mas não acho que estamos indo lá muito bem. Estou triste e meio sem saber o que fazer, sem saber se há como resolver isso, sem saber como articular meus incômodos e minha confusão - e também isto me parece sintomático.

quinta-feira, novembro 26, 2015

todo mundo e ninguém

#meuamigosecreto interrompe sistematicamente mulheres, não confia nas explicações delas mas usa seus argumentos - sem dar crédito - para discutir com outros homens. Se relaciona com mulheres como se fossem objetos de decoração ou crianças, tem sempre um tom paternalista e condescentente, não as trata pelo nome senão por "linda", "gata", "meu amor" - não, ele não trata nenhum de seus amigos assim. Faz questão de beijá-las, abraçá-las e tocá-las em toda situação, inclusive nas mais descontextualizadas; distribui beijos melados e abraços demorados. Divide as mulheres entre as "bonitas e burras" e as "inteligentes e...você sabe, não quis dizer que não são bonitas". Divide mulheres entre as "pra casar" e "pra trepar", comemora a libertação sexual - afinal, mais mulher pra transar com ele, né? Mas meu amigo secreto tem a convicção de que todas as mulheres que saem com ele querem namorar com ele, casar com ele, inventam planos durante a madrugada para engravidar dele, repovoar o mundo com sua sagrada semente! E ai delas se tentarem discordar - ele está sempre a postos para abençoá-las com sua iluminada opinião, para mostrar uma verdade que elas não veem. Meu amigo secreto não acha que mulheres devam ter cotas de representatividade em empresas porque TODO MUNDO sabe que mulheres não lideram bem, são mais emocionais, né? Não é por nada, mas ambientes com mulheres sempre dá problema, elas sempre acabam brigando, né?
Meu amigo secreto não se resume em uma pessoa só mas se expressa individualmente, está espalhado por aí em atitudes corriqueiras.

quarta-feira, novembro 25, 2015

As justificativas

Li um interessante artigo chamado "Orientalismo e guerra ao terror: uma biografia do fracasso", de Murilo Cleto. Eu, pouco entendida da situação atual mas cética em relação às justificativas correntes, achei esclarecedor acompanhar o processo de formação de uma imagem que embasa ações e a escolha de um lado da história.
É elucidadora a explicação do autor sobre o Oriente como invenção do Ocidente, em referência a Edward Said, bem como a transformação do termo "bárbaro" ao longo do tempo. No fundo se trata da insistência no processo de diferenciação entre "eles" e "nós", que dá abertura aos ataques e preconceitos contra "eles" a fim de proteger esta sagrada instituição que somos "nós". O orientalismo, afirma Cleto citando Said, é “'um estilo de pensamento baseado numa distinção ontológica e epistemológica feita entre o ‘Oriente’ e o ‘Ocidente'. E orientalista é, portanto, todo aquele que ensina, pesquisa, escreve sobre o Oriente e aceita a clivagem entre Leste e Oeste como ponto de partida para o mapeamento de suas caracterizações políticas, culturais e sociais". Com minhas palavras: a voz do "nós" ao falar sobre "eles", ao termos a pretensão de falar por "eles".
Um aluno da Síria frequentemente me alertava sobre como esta ideia de um "lá" que não é como "aqui" pontua as relações. E que na real ninguém se define exclusivamente por ser de "lá" ou "daqui". Me parece que falta isto: ouvir as pessoas, não enquanto alguém de "lá", mas como qualquer pessoa que tem algo a dizer. Falávamos hoje de profissões e brinquei a respeito do modo pessimista como ele descrevia as atividades dos pilotos. Ele se explicou: "é que no meu facebook vejo o tempo inteiro aviões caindo e destruindo cidades e pessoas..."

E por fim, um trecho que ficou na minha cabeça, martelando a ausência de artefatos e categorias para lidar e compreender o "eles": "Maomé não é odiado apenas por ser um profeta como qualquer outro, mas por representar uma espécie de anticristo diante da lógica maniqueísta de compreensão teocêntrica do mundo". 

segunda-feira, novembro 16, 2015

Os 26

Os tempos estão estranhos. A História impõe sua força sobre o indivíduo e sobre nós. Enquanto construíamos nosso interno, discutíamos como melhorar a comunicação, a troca, falávamos sobre como é bom estarmos juntos, o mundo se movia fora do nosso cômodo iluminado por luzes vermelhas, dos nossos toques e tecidos, dos nossos corpos-em-um-só. O mundo queimou na noite dos meus anos - não porque eram meus pois nada há de especial nisso ou em mim; e a bem dizer, o mundo tem queimado há tempos, a guerra come a terra há tempos, a lama e a sujeira soterram a vida há tempos. Decretam luto e morte estas barbáries e barbaridades todas. Enquanto isso, aqui dentro a vida desperta em sentimentos. 

sábado, outubro 31, 2015

A linguagem dos compromissos

"Tempo a gente tem o quanto a gente dá": o pretexto da falta de tempo, batido, sobre o qual se apoiam as não-vontades. A linguagem dos compromissos é inevitável - quem irá desmenti-la? Quando um se diz ocupado, o outro aceita. Mas cabe, sim, a desconfiança, não pelos motivos, que não me interessam, mas pelo significado da ausência. Na real, ninguém tem tempo, a gente arranja tempo para as coisas que são importantes. Problema é quando me sinto sempre arranjando tempo, escarafunchando os horários pra fazer caber uma noite juntos, e não há reciprocidade. Aí é sinal de algo errado e hora de pular fora. 

sábado, outubro 17, 2015

Tornar-se aquilo que se via no outro

Um exercício de paciência, de confiança, de esperança, de disponibilidade. Não é dom ou talento - é esforço, atenção, pensamento. Ensinar é uma escolha, uma atividade, não é algo dado, presenteado de cima ao nascer. Ao menos não para mim.
Hoje, enquanto cozinhava, me lembrei de um episódio ocorrido há uns quatro anos: encontrei no mercado um colega que à época era professor e encerrara o trabalho naquele dia; morávamos perto, fomos embora juntos e muito provavelmente por educação ele me chamou para subir no seu apartamento. Na hora não pensei na pertinência do convite porque tinha uma queda gigante por ele, mas tão logo entramos, percebi a fome que o dominava, aquela fome que não deixa pensar, falar, só deve ser urgentemente saciada. Sentado à minha frente comeu vorazmente enlatados diversos: milho, ervilha, atum ou sardinha, todos misturados entre gemidos de satisfação, um prazer quase sexual que, para falar a verdade, não cheguei a presenciar nele outra vez - nem mesmo quando tempos depois chegamos ao ato em si.
Pois que então nessa sexta-feira, enquanto preparava minhas aulas, me peguei abrindo latas de comida e misturando tudo junto a alguns legumes. Um estalo na mente e de repente eu era ele ali: professor particular, cursando mestrado, deslocando-se pela cidade durante a semana, engolindo alguns sapos e questionando a si mesmo. Eu percebi hoje, nitidamente, o quanto naquela época este modo de ser me fascinava, tão solto no mundo, sem CLT, quase sem patrão, sorvendo os teatros de São Paulo volta e meia com algumas cervejas e uma cabeça muito aberta. Me tornei o que admirava. E continuo a admirar o que agora sou?

quarta-feira, outubro 14, 2015

O ato de nomear

O escritor é, me parece, aquele cara que nunca parou. Nos idos 2012 ele já escrevia, talvez tivesse escrito desde todo o sempre de sua existência até aquele momento, em 2012, a partir do qual sua escrita e existência passaram a existir para mim. E depois de 2012 ele prosseguiu: volta e meia me surgia seu nome em notícias que eu não procurava, mas saltavam no computador. O escritor é, apesar de eu não o ter achado super genial pelo pouco que eu li. A bem dizer, achei raso, apesar do verniz cultural ali presente, mas quem sabe eu me surpreenda. O fato é que: ele é. Carrega um título, entrou na seleta lista dos caras relativamente conhecidos, algo meio underground que - por isso mesmo, diriam - deveria representar uma grandiosidade, aquela dos escritos nunca reconhecidos. Mas para além disso, me lembro dos dias de breve convivência e tenho um ímpeto, uma intuição, de que algo há de surpreender. Era um cara cheio de ideias boas e muito simples. Deve ser que seu romance, mesmo que não biográfico, possa portar alguma coisa assim também.

terça-feira, outubro 13, 2015

Reconciliação

Eu já não me lembrava de alguns apelidos, olhei para algumas pessoas com estranhamento - alguns mais gordos, mais velhos, com o rosto marcado pelo tempo. Mas eles, o centro da reconciliação, lembravam de tudo: olhavam as fotos, compartilhavam lembranças e sensações que nunca saberemos ao certo como eram. As casas antigas onde moraram, as roupas daquela época, a pobreza absurda, as baratas que pairavam à noite. Fiquei olhando minha mãe (re)construir sua história, como ela mesma disse, junto do irmão outrora afastado. As fotos rodaram de mão em mão, os filhos do meu primo conheceram imagens da avó e da bisavó em um tempo longínquo que habita recordações quase soterradas: mas alguém puxou as lembranças para fora, pra superfície do presente, e de repente estávamos todos num churrasco de domingo tentando superar os anos, as diferenças, pra ver se dá pra reatar os laços. Aí eu me toquei de que não só eles estão diferentes, nós somos outros - o tanto que nossa vida mudou desde então! Foi um bom domingo. Presenciei um momento como os que costumo ler: a família, sendo a última unidade política moderna, se representa de variadas formas no romances familiares, quiçá meus preferidos, sobretudo nos conflitos. E nas reconciliações.

sábado, outubro 03, 2015

Grão e pão

Duas alunas cancelam a aula na mesma semana por falecimento de pessoas próximas. No mesmo local pergunto à secretária, que estivera afastada, como estavam as coisas; é uma mocinha gentil e muito bacana e perguntar se estava tudo bem foi uma forma de dizer que tinha notado sua ausência. Ao que ela me responde: "agora sim. É que estou gestante". 
(Percebe? Ciclos e renovação)
Sorrimos, conversamos um pouco sobre maternidade e as mudanças no corpo. Saí de lá pensativa, intrigada: algum dia as coisas existirão sem que a gente exista, como já existiam antes mesmo de que nós existíssemos. Imaginar a vida antes de nosso nascimento ou no pós-morte - como é possível? Construir uma narrativa de algo no qual nossa existência e consciência não estavam e não estarão presente - como fazer isso?
Vida e universo "estendem-se infinito, imenso monolito".


quarta-feira, setembro 23, 2015

Arte dos últimos dias

Katharina und José
Na estante de livros para doação, num lugar insólito, encontrei uma surpresa. O idioma na lombada me pasmou, mas não mais do que quando abri o livro e dei de cara com uma dedicatória na primeira página: de Katharina pra José. Katharina presentou em 22 de fevereiro de 2009 o querido José por seu aniversário com um livro, "um dos romances alemães mais bem-sucedidos do pós-guerra", que ela já lera e a empolgara. Ganhei um sorriso ainda maior que aquele que habitou - todo meu corpo, diga-se de passagem - no fim do domingo e início da segunda. Estou profundamente curiosa com die Vermessung der Welt, como se este livro tivesse me esperado ali.

Das "comédias" profundas
Um tempo atrás, quando morava com uns amigos, havia uma senhora que limpava nossa casa. Era uma sensação bizarra alguém cuidando de minha sujeira, coisa da qual eu até então sempre me encarregara. Na época não me era incômodo, a situação só beirava a estranheza.
ontem [na verdade, há uma semana] assisti Que horas ela volta e saí com essa lembrança martelando. Na minha sessão as pessoas aplaudiam momentos claramente trágicos, dramáticos, porque pra elas era tudo exótico, engraçado (ou pior, "engraçadinho"): a empregada com  sotaque diferente; a filha cheia de sonhos sobre os quais, coitadinha, não conhece os limites; a menção ao cantinho no Campo Limpo; a condescendência sob a forma do "como da família"; a arquitetura da exclusão do quartinho da empregada, entulhando os eletrodomésticos conquistados com muito suor - do trabalho e das noites quentes em cômodos sufocantes, disputados com insetos, noites das quais o ventilador não dá conta. 
O filme é "simples", a história todos conhecemos, em diversas profundidades. Mas a mensagem é acessível, tocante. Parecia que estavam falando de nossas famílias. de nossas relações de classe, de nossas mães, tias e avós que criaram suas famílias - e a família de outras pessoas ao providenciar a comida, a limpeza, o carinho que seus próprios filhos não tiveram. Mas o final, o final me apertou o coração: uma perspectiva boa, um olhar atento a como interromper o ciclo. Mulheres fortes, mesmo ali, "romanceadas", me dão esperança.

terça-feira, setembro 15, 2015

Sinfonia

Sinfonia no ônibus: brecada brusca. Eu estava de frente e vi a movimentação uniforme, uma onda, a mocinha no degrau tombou lentamente, em câmera lenta. Seguraram-na como fazendo uma rede às costas. Um segundo e todos recompostos, o ônibus seguiu.
Lembrei de Drummond: 
stop! a vida parou. Ou foi o automóvel?

domingo, setembro 13, 2015

Um mês e mais

Um mês e mais durou o estado de tesão prolongado. Quanto tempo exatamente eu não sei: não me lembro de nossa primeira conversa, embora lembre bem do primeiro olhar. E do último, quem sabe. Mas foi algo como um mês ou dois meses em que eu me questionava sobre estas coisas nunca antes sentidas tão internamente, intensamente. E eu, que quase não conseguia escrever sobre você no "durante", encontro umas palavras tortas no fim. Eu fui contando a vida pelos fins de semana, criando uma espécie de certeza fajuta, ignorando a iminência da falta. E então é chegado o dia: estou comigo novamente, e só. E que isso baste. 

sexta-feira, setembro 04, 2015

Êxodos e essa dor que não é nossa

Nos comovemos e declaramos o quão tristes nos sentimos com a imagem do "garoto sírio", o quanto essa imagem nos tocou porque temos irmãos/sobrinhos/pessoas queridas em situação/idade semelhante. No fundo o egoísmo reduz a questão a "senti compaixão porque poderia ser um dos meus", mas a barbárie do fato reside em que Aylan Kurdi era uma pessoa e apenas isso deveria bastar para notar o horror. Isso não é sobre nós, que falamos do alto da nossa segurança física, emocional, financeira, mas sobre as muitas, incontáveis pessoas em situação de desespero e desamparo. 
O que fez o mundo despertar para a existência - que não é de hoje - destas pessoas? Arrisco que um dos destino dos atuais fluxos migratórios, isto é, o solo europeu, fez a realidade bater a porta. Afinal, o êxodo sempre existiu, com a diferença de quem eram os envolvidos, de onde iam e para onde iam. Na série fotográfica Êxodos Sebastião Salgado documentou este movimento entre realidades esquecidas, entre países desconhecidos, de caminhos de seis meses em mata fechada para chegar em algum lugar - e ser mandado de volta. Ninguém atentava para estes deslocamentos populacionais, como se fosse normal ter de fugir do seu próprio país por conta da fome, da pobreza, da intolerância religiosa, e lançar-se em países nos quais só encontram novamente fome, pobreza, intolerância religiosa e rejeição. Indonésia, Vietnã, Ruanda, Burundi, Curdistão. Quem os conhece, quem os nomeia? O horror sempre existiu, mas só foi descoberto quando bateu às portas do território "higienizado e civilizado", que exerceu e segue exercendo toda sua capacidade civilizatória construindo muros - físicos, e ideológicos - e transportando mais uma vez pessoas em caminhões para lugares não-explicados.

domingo, agosto 30, 2015

Construção

A construção do sentimento deve passar por várias etapas. Tive a dúvida e o incômodo e descobri do que não gosto, mas o outro lado da construção foi seu cheiro e seu beijo pela manhã e as discussões tomando café. Será que vamos entender um pouco mais sobre ciência juntos? Você me ensina, eu te explico, temos referências diferentes e somos de universos diferentes mas comunicantes, próximos, complementares. Até onde temos consciência, as coisas vão acontecendo naturalmente. De todo o resto que não sabemos, nos sobra o encanto e o encantamento sobre nós dois. 

domingo, agosto 23, 2015

Considerações sobre o incômodo

De duas ou três coisas eu não gostei: na sua brisa você se individualiza nos momentos que temos para ficar juntos e de repente passa a não me ouvir mais, não me considerar mais. Além disso, ainda não sei se foi prepotência ou inocência sua acreditar que se eu fumasse eu me alçaria "quase ao seu nível de pensamento". Meu trabalho é o pensamento, independente de qualquer brisa, da mesma forma que outras pessoas têm níveis de pensamento abstrato o tempo todo, sem qualquer brisa, pelo simples fato de que somos feitos para pensar, dotados da capacidade de pensar, e isso não faz de nenhum de nós especial entre os outros. No quesito pensamento, somos todos iguais.
Mas tento manter a lucidez e pensar os limites do aceitável, do tolerável, que não implica senão me conhecer nesta dada situação. Bem sei que no limite todo mundo assim se define: "I ain't no perfect man. I'm trying to do, the best that I can".

quarta-feira, julho 29, 2015

Dar conta

Estou pensando no futuro mas tentando não fazer deste momento e de suas decisões algo tão definitivo. Estou tentando amarrar os pontos; estou tentando arriscar mas ao mesmo tempo ser realista, estou tentando valorizar minhas forças enquanto melhoro minhas fraquezas. Estou tentando dar conta, estou tentando separar aquilo que sou eu, meus desejos, minhas expectativas e minhas vontades do que são as tendências, a vibe dos amigos, o caminho "natural" e muito fácil para alguns. Estou consciente, mais do que nunca, de quanta sorte tenho por estar rodeada de pessoas que me apoiam, mas preciso me tornar mais consciente de mim, do meu interior, de minha extensão na escrita, na fala, no gesto. Que sou eu. Que sou eu?

domingo, julho 26, 2015

Soterramento da apo(r)ética

Me sinto por vezes apoética, eu, que nada entendo das artes, pouco sei de literatura, que não conheço música clássica. Veja bem, minha força é mais bruta - eu vejo a beleza, mas me questiono sobre minha capacidade de criá-la, conceituá-la. Questiono se o social não me fala mais alto, se o bruto da filosofia, o nuclear, não é um chamado mais forte. Sei que é um mesmo espiritual que se desdobra em várias formas, mas não me seriam algumas delas mais presentes que as outras?
Me sinto também por vezes aporética e na minha negação dos limites, escorregava das definições - necessárias, como ao começar e terminar um trabalho de fôlego. Aos poucos me localizo melhor. Tenho ideias, arrisco suposições. Avanço em passos tímidos num projeto grandioso e em mim mesma, e com isso supero as aporias.

domingo, julho 19, 2015

Faça boa arte

"A maioria de nós só descobre nossas próprias vozes depois de termos soado como um monte de outras pessoas. Mas uma coisa que você tem que ninguém mais tem é você. Sua voz, sua mente, sua estória, sua visão. Então escreva e desenhe e construa e toque e dance e viva como só você pode viver".

quinta-feira, julho 09, 2015

Velha infância

Já nos conhecemos de outra vida - sim, pois três anos atrás era outra a vida. Eu era outra pessoa, você conheceu minha outra casa, me conheceu num momento tão diferente e parece que você mudou também. Mas sua simplicidade ainda me surpreende, me tira dos ambientes de gente intelectual, pedante, falando difícil mas empregando palavras erradas. Sua coragem e desprendimento de falar claramente sobre o que não sabe, assumindo que não sabe, me deixa à vontade. Fizemos tudo naturalmente, falamos espontaneamente 

- e nos (re)encontramos sem querer ou por muito querer? 

Mas ainda é um desafio lidar com um jeito tão diferente, com sua brisa crônica, e saber ter paciência com outro momento da vida, outra dimensão de compreensão das coisas. Seu olhar sobre o mundo tem um quê de pueril que eu não cultivo há tanto tempo; você é uma espécie de alma livre voando pelo mundo sem saber ainda onde pousar.

sexta-feira, julho 03, 2015

Carinho

No som há uma narrativa; nela um desejo, um carinho. Lembro de você em diversos momentos, travamos intensos diálogos mentais nos quais conto bobagens e ao mesmo tempo tomo consciência do complexo em mim simulando estes segredos compartilhados.
Belezas são coisas acesas por dentro.
Gal cantando Mautner me explicou o que me atraiu. Mas eu ainda completaria: belezas são coisas em você que me acendem por dentro. Me molham, me perturbam, me fazem lembrar de você em textos por aí, ter impulsos de te escrever dizendo "lê isso aqui, é bonitinho". Me fazem gozar de cada meia hora, hora e meia perto um do outro. 
E que são essas coisas senão o pedaço de pele clara do pulso aparecendo pelo botão aberto da camisa, o cinto ajustado, pequenas ondas douradas do cabelo, a sobrancelha levemente arqueada, seu sorriso fácil...

terça-feira, junho 30, 2015

Sobre fascínios

Você, eu e muitos outros queremos algo que fascine, descobrir uma motivação pra vida, um sentido pros dias, que cause arrepios e deixe os cabelos em pé.
Eu me pergunto em que medida isto não é um instrumento de controle, um norte para não termos de lidar com o desconhecido de cada dia, com o fato de que nossa existência não necessariamente possui - ou precisa ter - finalidade. A ideologia do trabalho e do amor, do faça o que ama gera tanto os workaholic quanto os meritocratas que aguardam ansiosamente a recompensa por empregar seu tempo em algo que gostam. Sem contar o inexorável sentimento de superioridade por se dedicar a algo que pretensamente seria mais profundo e verdadeiro que meros trabalhos e ocupações. 
Qual a urgência em definir o mote de sua vida? Para não ter de se questionar mais sobre as escolhas, sobre os rumos, sobre o que gosta, o que dá prazer? Não é possível que várias coisas deem prazer, em vários momentos da vida?
Filosofia é minha praia. Até bem pouco tempo eu sequer conhecia praia, hoje gosto, me dá prazer o sol, o mar, ainda que sem saber nadar. E por muito tempo da minha vida não conhecia filosofia, e era feliz assim também. Arte é um meio termo, ainda não resolvi muito bem comigo mesmo o fato de me soar tão elitista o trabalho considerado "artístico" - mas música, cinema, literatura e as teorias, crítica e história destas me dão prazer. Ensinar prende minha atenção; descobrir o funcionamento da língua e levar outros a pensar sobre isso me arranca sorrisos satisfeitos. O pensamento sobre gênero e sobre direitos humanos foi e é fundamental na minha formação humana. 
Mas e todo este mundo ainda por conhecer? Não corro o risco de me cegar ao definir sem volta os limites de minha vida aos 25 anos - ou aos 50, mesmo aos 70?
Não vamos nos angustiar - interesses fazem bem à mente, descobrir algo que gosta dá prazer, mas a fixação estagnada tem um potencial destruidor de nossa criatividade e ânimo. Tenhamos cuidado com essa imagem, essa coisa shiny-happy-people largando tudo - especialmente quando continuam a ter tudo mesmo "largando-tudo" - para fazer o que amam. 

domingo, junho 28, 2015

Conceituando o difícil, o que nos escapa

Espírito é para mim dos conceitos mais difíceis de definir, pois abrangente e muito particular em Hegel. Mas quem sabe em uma paráfrase: diz Asveld que o aspecto característico do conceito de espírito no jovem Hegel não é consciência de si - de uma matriz racionalista - mas alma. O espírito é o que opera a unidade profunda de uma totalidade orgânica, alguma coisa que não é exatamente uma coisa, que não pertence à família do entendimento, mas de uma raiz mais sutil; o espiritual designa de uma maneira geral esse gênero de realidades, algo além da perspectiva do entendimento, que só conhece o mundo das coisas. Deste modo, ao dizer que Deus é espírito, Hegel pretenderia insistir no fato de que Deus não é uma realidade individual. Já do lado da subjetividade humana, o espírito designaria a parte do psiquismo, a disposição pela qual se está aberto ao espiritual. Assim o jovem Hegel chega a uma intuição do divino sob os termos de sentimento (Gefühl), puro sentimento da vida (reines Gefühl des Lebens) e amor (Liebe).

sexta-feira, junho 26, 2015

Importâncias

Direito e liberdade: afirmação de que sim, você pode ser abertamente quem você é, amar quem quiser, construir uma vida com quem quiser e como quiser. Talvez só saiba o valor disso quem teve possibilidades negadas, restritas. Despreze instituições, questione a convenção, mas pense: cada indivíduo atribui em sua vida determinadas importâncias de acordo com sua história e experiência. Que significa para mim o casamento? Nada demais, um caminho, uma escolha, um possibilidade distante e longínqua - e que nunca me apareceu com um selo de "proibido". Nunca tive medo de abraçar quem eu quisesse, de beijar quem eu quisesse, nunca precisei esconder afeto ou conter um gesto de carinho. Não corro riscos por me expressar afetivamente, mas presenciei a importância disso vendo tantas pessoas queridas celebrarem espaços de segurança, onde lhes era permitido ser de modo pleno. Por isso, quando a grande nação influente decide, afirma, passa a assegurar esse direito, vivenciamos um momento histórico, 50 anos depois de Stonewall e em tempos sombrios de conservadorismo em território nacional. 
Que o amor seja uma possibilidade real para todos nós!

segunda-feira, junho 22, 2015

Pequeno monumento a Caetano

Tom Zé cantou um dia o envelhecimento da Brigitte Bardot, mas será que ele percebe o velhinho simpático em que Caetano se transformou? Enquanto o ouvia cantar na Praça Julio Prestes, vi um Caetano de cabelos brancos se desculpando por uma gripe que teria atrapalhado sua performance. Caetano, meu bem, você é parte da nossa vida, da nossa cultura, da nossa memória musical. Meus olhos marejaram, meu corpo se arrepiou e me emocionei tantas vezes neste seu show que não saberia descrever. No ranking de minhas imagens pré-morte estaria agora, sem dúvida, você com seu violão cantando Triste Bahia sob o céu deste junho gelado. Me fez sentir vontade de seguir o Olodum balançando o pelô, de rezar a novena de Dona Canô, de conhecer uma Bahia que é mais de sua infância que o presente. 

quarta-feira, junho 17, 2015

Imagens pré-morte

Se pudesse escolher minhas imagens pré-morte, meu olho refletiria:
Ilu Obá de Min tocando no Anhangabaú noite adentro, no Carnaval;
Igrejas de Ouro Preto e seu ouro, seus afrescos;
Gal cantando "vivemos na melhor cidade da América do Sul" na Virada Cultural;
O sorriso da irmã mais velha quando se casou;
A visita ao túmulo numa tarde chuvosa;
Sol batendo no prédio antigo, nas vielas do Stift

domingo, junho 14, 2015

Poesias

Há, sim, poesia no mundo. Tenho um conhecido que escreve naturalmente: conta as histórias de sua pequena cidade, documentando acontecimentos e figuras célebres que só a vida no interior sabe fabricar. Quando nos vemos - ainda que raramente - eu tenho a sensação de que ele, ali na minha frente, é sem dúvidas o mesmo cara que escreve; ele vive o que escreve, não finge, não produz artificialmente. Ele fala de coisas comuns, banais, da vida simples. Quando o leio é como se o visse, quando o vejo, é como se sua figura materializasse sua escrita. Há pessoas inerentemente, genuinamente poéticas. 

Aos poucos me torno consciente do que sou. Eu sou o que faço? Sou minha profissão? Ou minha profissão é uma ocupação?

***

Agora entendo, um pouco, o que quer dizer Thomas Mann, mas ainda por terceiros - pelas lentes de Luchino Visconti. Morte em Veneza é o artista perturbado, o passado castrador, a pergunta "o que me tornei, que caminho escolhi?" incessante. É o intenso mundo interior enquanto o exterior explode, queima. O peso de uma obsessão contra a realização do conceito: você trocaria o belo pela promessa de pequena eternidade contida na proteção à saúde? Todo o sentimento renegado, subjugado, vem à tona nas curvas do cabelo e do corpo, no nariz imponente e na postura nobre. Morte em Veneza é belo e triste, disseram; é arrastado, planos longos, horizontes, suor e tinta escorrendo, barulho de talheres e expressões levemente mórbidas. 

sexta-feira, junho 12, 2015

Mora na filosofia

A filosofia me abriu possibilidades. Eu fui, através dela, introduzida a mundos reais com os quais não tinha proximidade, ela me conduziu a novos países, a outras línguas; numa esfera subjetiva a filosofia despertou uma consciência diferente: o pensamento que se pensa, a consideração de que é preciso mesmo tempo, calma, leitura, introspecção e discussão para que uma ideia se desenvolva, para que uma pergunta se responda - sob a condição de que se responda apenas temporariamente, criando logo em seguida outra pergunta. A filosofia me trouxe um pouco de sensibilidade pra arte-cinema-música-poesia-fotografia-literatura, muita curiosidade pela religião-absoluto-culto-dogma, um clique para a ciência-técnica, uma certeza da importância da ética-moral, um tatear pela linguagem-lógica. E agora, me encontro novamente remetida ao seu núcleo duro, à filosofia por si só. Hegel, de onde parti, me encanta e impulsiona até hoje; tenho epifanias contínuas lendo Hegel no meio da tarde. 

domingo, junho 07, 2015

Fim

Não fui nada do que se esperava que eu fosse. Na verdade, ninguém é. Quando deveria ser engraçada e sorridente e cativante, era apenas eu mesma: um silêncio e a escuta. Quando deveria ser passional, era fria. Quando deveria ser a melhor, a mais dedicada, a que mais falava de seus projetos e de si mesma, eu não estava nem aí pra isso. É porque eu gostava muito de você e só queria ficar numa boa com isso, queria te ouvir mais do que falar. Mas aparentemente não era o bastante e eu fiquei assim, com uma mágoa idiota, com um ressentimento besta, apesar de saber que a imagem que ainda faço de você não corresponde em nada à realidade. Não gosto das suas imagens, são fracas; seu jeito de escrever é afetado, cheio de floreios, enfiando palavras difíceis no lugar errado e separando sujeito do objeto com vírgula. Algo me diz que esse gostar desiludido e todo errado na verdade nem é pra você. É pra alguma coisa que criei e que se dissolveu na minha cabeça, sem muita existência própria.  

quinta-feira, junho 04, 2015

A softer world

Estou cansada.
C A N S A D A
Pedacinhos do meu corpo pedem descanso e algumas horas a mais para terminar os trabalhos, sentir a cidade, resgatar a lucidez. Estamos todos amedrontados mediante a possibilidade iminente de enlouquecer. É claro, há que se perguntar: que é a loucura? que é a razão? Desconfio cada vez mais de que existe um mundo fora do círculo burocrático, das relações diplomáticas, um mundo íntimo que só se compartilha consigo mesmo, mas vivido no externo. Não é um parque de diversões na cabeça, é ~real~. 
Hoje, enquanto descia de ônibus a rua movimentada, capturei a cena: no boteco-pé-sujo, homens se amontoavam na porta bebendo cerveja e olhando as garotas. Lá dentro, meio de costas pra rua, um senhorzinho tocava um violão como que fazendo uma serenata pra cachaça à sua frente, pousada sobre a mesa. Segurava o violão como os sertanejos antigos, era muito humilde, roupas simples, sem chapéu. Bebia cachaça. Com os fones de ouvido e de dentro do ônibus não pude ouvir sua música, nem os homens parados à porta, nem o garçom, nem os passantes. O violeiro nitidamente vivia a realidade dele, no mundo dele, inacessível a qualquer um que não fosse ele. 

segunda-feira, junho 01, 2015

Sobre a morte

Os dias são implacáveis. As coisas acontecem, apesar de. Catarina morreu - que significa isto? O que representa pensar que nunca mais veremos a nossa gata e que nos referiremos a ela no passado se existe lembrança, se sua presença não se apagou, se guardamos por um instante que seja o cheirinho da sua barriga, a imagem das suas camadas de pelo macio se agitando enquanto ela amassava paozinho no cobertor antes de se deitar?
A morte é uma coisa desafiadora - não ao sentimento, mas à razão. Como pode ser isto: que uma coisa seja e logo não seja mais? Não permaneceria algo de seu ser em nós, quando nos lembramos; e não permanecerá algo do seu ser em nós sempre que nos lembrarmos?

sábado, maio 30, 2015

O Sal da Terra

Sebastião-Salgado-fotógrafo carrega sempre duas câmeras a tiracolo. O Sebastião-Salgado-Sebastião-Salgado-mesmo, Sebastião-Salgado-Junior, se protege do sol com um chapeuzinho rústico. Parece, sim, um gringo, mas sua voz em português é mais doce que em francês. Já Lélia em francês tem força e é mulher marcada pelo sol.
Os projetos de Sebastião Salgado são descritos em escala crescente de ambição, se é que se pode assim dizer - ambição artística, procura inquieta, como quem gera um projeto já na própria execução de um primeiro. Da descrença retorna à beleza; da miséria, da pobreza, da seca, dos ossos, da lama, do fogo, do petróleo e da morte retorna à vida, à natureza, aos animais sorridentes e permissivos retratados em estado de felicidade no habitat natural; faz brotar uma floresta e põe de volta o carpete verde nas montanhas. Quando eu era criança viajávamos pra Minas e a lembrança das matas fechadas já nas estradas me é ainda bem nítida: montanhas de couve-flores gigantes. Os postes de transmissão eram seres animados, Megazordes impossíveis de entender.
O mundo é vasto mas cabe no espaço das nossas lembranças - quase tudo a gente reduz à própria experiência. Sebastião-Salgado-pai é como meu pai vai ser no futuro e na velhice. Alguma coisa do sotaque dele me comoveu, ou no jeito de enumerar os passarinhos que viviam ali...não sei. 
A história do homem é uma história das guerras? É Êxodos ou Gênesis? 

domingo, maio 24, 2015

Apontamentos

Apontamentos avulsos e breves só para não perder o pensamento:

1. Uma fala de dez minutos de um professor genial é capaz de fazer mais pela orientação intelectual de uma pessoa que uma vaga formação de anos e anos. Um professor que apresente uma possibilidade de ensino libertária, descentralizada das categorias ocidentais de relações capitalistas entre tempo e trabalho, que respeite a diversidade de culturas e que seja coerente em suas escolhas e em sua vida com sua proposta de aula é um modelo insuperável.

2. Já esqueceram algumas coisas aqui em casa:
um chapéu, um casaco, chaves e óculos embaixo do pacote de salgadinho.
Não sei se foi de propósito, pequenos pretextos para um retorno. Não sei se foram apenas coincidências ou vezes em que as pessoas estiveram tão à vontade que perderam a preocupação com seus pertences. 

3. O delírio da febre e o sono acumulado da semana. 
Expurguei os males no suor, nos calafrios e tremores, lavando-os nos banhos para baixar a febre. É preciso, sim, tempo e ritmo do corpo - do contrário, ele impõe suas necessidades e nos faz parar, nos faz arranjar o tempo para o descanso das piores formas possíveis. E ainda tem o cheiro da doença, o cheiro da febre e dos remédios na pele, no suor e na urina. É preciso lavar tudo - corpo, roupas, toalhas e lençóis - para desintoxicar da doença e desobstruir a cura.

terça-feira, maio 19, 2015

Beleza

Carolina Maria de Jesus "sentia ideias que [...] desconhecia".
Quer coisa mais bonita que isso? O sentimento do saber inerente, que ultrapassa séculos e continentes, que aponta para a sabedoria soterrada nos lixões, favelas, rituais, que resgata e revive nossos ancestrais?

quinta-feira, maio 14, 2015

Sobre "ficar bem", mas não "ficar"

Vamos ficar bem, eu sei, mas algumas coisas não vão ficar. O mais duro, porém, são os entes, os seres que não ficam, não permanecem. Um pedacinho de nós está literalmente morrendo; estamos assistindo perplexos e paralisados sob a ameaça de ter de tomar uma decisão para aliviar o sofrimento - a decisão que julgamos justa a respeito de uma situação sobre a qual não se conhece o outro lado.
Já não sei o que posso falar porque na verdade estou de longe. A lembrança me arrebata volta e meia como aviso de algo que está para acontecer, amargando os dias e os gostos. Deveríamos nos deter na lembrança do percurso, mais que no final, na despedida. Mas como isso é possível? A natureza é cruel em suas resoluções e acho difícil verbalizar enquanto me percebo, há alguns dias, num estado de negação, confiando na imprevisibilidade dos fatos e nas possibilidades menos traumáticas.
O tempo, sempre ele.

segunda-feira, maio 04, 2015

História

May the fourth be with you.

sexta-feira, maio 01, 2015

Aprendendo a esperar o sinal abrir

Ontem eu pensava: eu quero sabedoria pra decidir.
Queria acordar amanhã - na verdade, já hoje - com umas respostas pontuais e um problema específico resolvido. Queria acordar tranquila e passar um dia bom dançandinho Wilco.
Não tive bons resultados, mas bons indícios. Nada se resolveu, mas nem tudo está perdido. O mundo exige de mim uma paciência absurda e me entrega um caminho de sorte, de pessoas dispostas a me ajudar. Sinto muito sono e preocupação, mas volta e meia uma ternura infinita molha os olhos porque nem todo mundo é mau, mesquinho ou me trata com indiferença. E bem sei: preciso ter paciência comigo mesmo até o estado de atenção dessa paixão triste passar. Até lá é caminho. Muito trabalho e formação.

domingo, abril 26, 2015

Silêncio e pausa

Sabedoria pode ser calar.
Calar-se sendo injustiçado é difícil, mas lidar com pessoas desonestas sempre implica riscos que não imaginamos - não temo o erro, mas a mentira e a capacidade de agir de formas vis imprevisíveis. Retirar-se do convívio e suprimir qualquer forma de comunicação ainda se apresenta como a melhor coisa a fazer, porque não faço justiça nem modifico a mente de uma pessoa má intencionada com minhas palavras. Primeiro pensei: "não é questão de dinheiro", mas é sim questão de dinheiro, na medida que ele simboliza meu trabalho e que o devido pagamento virá para finalizar as relações conflituosas. 

Às vezes os tempos se tornam difíceis e eu só queria manter o coração em paz, sem sobressaltos. Não sou desse - nem para esse - mundo que me desgasta em necessidade de dinheiro e em ter de me submeter a situações que me maltratam. Não sou do mundo de tirar vantagem, do lucro e do dinheiro excedente. Eu preciso de dinheiro para viver, não quero precisar de dinheiro para ser feliz. Eu só queria sentir meu coração em paz de novo.

quinta-feira, abril 23, 2015

Próxima entrevista

Hoje pela manhã ouvi aquele sábio professor dizer que não devemos gastar nosso precioso tempo com coisas inúteis. Ele narrava uma experiência própria: fora contratado por uma escola particular em bairro nobre e após a primeira aula, foi direto à secretaria pedir demissão. Não consegui assistir uma aula inteira sequer desde o começo de seu curso, mas em dez minutos ele me disse exatamente o que eu deveria ouvir.
Ser adulto é lidar com os riscos ou assumir responsabilidades? Ser o que somos ou o que devemos ser?

segunda-feira, abril 13, 2015

Morte, orgulho e força

Dois grandes morrem quase ao mesmo tempo sem que eu os tenha lido. 
Enquanto isso, transformo rejeição em força, fraqueza em força, sentimentalismo em força, raiva e revolta em força.
E me orgulho dos frutos que aparecem - achei que não seria mais possível converter pessoa adulta em amante de leitura, contaminar alguém distante com o bichinho das letras, mas as imagens e os pedidos me convencem do contrário. 
É isso então: dois grandes da escrita morrem enquanto nasce, pequenininho, o desejo de leitura por aí. 

Por esses dias



domingo, abril 05, 2015

Desintoxicação

Pra mais de 40 dias - o tempo da quaresma - durou a desintoxicação. Sem dúvida, é o tempo que levou para sair do corpo. Eu penso: é possível sentir uma pessoa muito querida se afastando, deixando seu convívio. E é possível sentir quando você quer afastá-la, ou afastar a lembrança dela. Eu sinto o interesse partindo, a percebo caindo no campo das pessoas comuns, das quais as notícias não são procuradas, elas chegam, às vezes e nem sempre. E sei que logo logo em breve vou vê-la com alguém e que isso não vai significar senão o que não tinha percebido desde o início: que ela não gostava de mim como eu gostava dela. E a vida vai seguir. Pode ser que daqui uns meses ela me procure, a gente se veja e se toque de novo, pra nunca mais. Pode ser que esse nunca mais chegue antes também ou já esteja em processo. Pode ser que em breve eu passe a tê-la na mais alta estima como alguém legal do passado, pode ser, pode ser. O importante é que eu volte, urgente e definitivamente, a ser de quem devo ser - de mim mesmo. Que eu tenha consciência da felicidade que é estar comigo mesmo cozinhando no pequeno cômodo, inventando receita, pensando em pôr flores na janela, lavando roupa, trocando lençol, preparando aula, escrevendo o futuro.

sexta-feira, abril 03, 2015

A origem do problema

Por que espero carinho de alguns e não aceito de outros? É preciso coragem para aceitar a mudança - para ser a mudança. Para aceitar que por trás do desprezo pelo padrão de beleza está uma vontade desesperada de ser descoberta por alguém como a-pessoa-mais-linda-do-mundo. Que por trás do reconhecimento de um futuro sem par está uma crença (logo eu, que julgo não ter crenças) de que ninguém vai me amar. Me entender. Me aceitar mas me estimular a ser melhor. É preciso coragem para ser honesto consigo mesmo. 

domingo, março 29, 2015

Uma década

De volta a 2004:
ouvíamos Dead Fish. Tão Iguais me fazia arrepiar desde aquela época; é engraçado como nos ciclos as sensações se repetem: esta música é atual? Ou atemporal?

sábado, março 28, 2015

Antídoto

Em todas vezes que se aproximam essas sensações sabidamente ruins, contraproducentes, eu busco conscientemente o que possa me fazer bem, me fazer feliz e forte. Reconheço a beleza e o erro, que me ajudam a equilibrar o tratamento e a humanizar o exagero. Eles escancaram: 
tudo vai passar!
Como sempre.
E no final, o que resta sou eu mesmo. Por isso me preservo tanto.

quarta-feira, março 25, 2015

Make it wit chu

Apoiei a cabeça nas mãos, os cotovelos sobre a mesa. Pensava muito. Ando cansada, ando correndo, corrida, mas forte. Tenho dificuldades com manhãs: o corpo quer a cama, sente frio, preguiça, sono, quer se espreguiçar mas também ficar inerte. Movimentos não respondem aos comandos, mas é preciso levantar, e partir. 

Faço uma tradução, penso verbos regulares. Preparo uma canção e pressinto o momento de apresentar uma beleza a quem menos espera. Ou reapresentar - que mania é essa de achar que mais ninguém conheceria uma musiquinha tão singela? 

Coço a cabeça, lembro de imagens. Frases soltas, pedidos. Again and again, anytime, anywhere. Me vejo nessas horas como uma Gibson girl fora de contexto, mas com algo daquela melancolia, daquele pensamento latente quase que pousado na pele e expresso em linhas. Uma figura confusa, um rascunho em branco e preto, pura sombra e traço.

terça-feira, março 24, 2015

O que fica depois da conversa

Sabe, fiquei pensando - como sempre acontece quando conversamos - nessa coisa de ser muito fechada e não gostar de falar de certas (nem de muitas) coisas. Me questiono um pouco: como as pessoas se relacionam? Elas falam mesmo de tudo? Falam de si, da vida, das incertezas, e das incertezas que nem se sabem verdadeiramente incertas? Minha vida não tem grandes coisas: você quer mesmo me ouvir falando do cotidiano, da aula, da musiquinha, de como fiquei feliz porque meu planejamento de aula deu certo, mas cansada no fim do dia? Quer me ouvir falando de mim, atribuindo importância a todas essas coisas que pra você devem ser entediantes, cansativas, todas iguais? Pode ser que eu não queira que você descubra que sou tão sem graça como todo mundo por aí. Pode ser que eu precise de tempo, confiança, espaço, ganhar terreno, preciso te conhecer, preciso que você me conheça e que eu me conheça com você.

domingo, março 22, 2015

Como te leio?

De vários diálogos vinha o aviso que, caso fosse escrito, surgiria em letras garrafais:
"É que sou chato!"
Particularidades não são chatices nem defeitos - são o que nos tornam os que nós somos. A chatice reside só no campo da obstinação, da manutenção das características que sabemos serem prejudiciais aos outros ou a nós mesmos. 
Faço uma figuração, vez ou outra, na sua vida. Nem sempre entendo o que você quer dizer porque seu raciocínio guarda mais do que você apresenta. Acho que você tem um cuidado meio apegado com suas palavras ou ideias. Por outro lado é reativo e nitidamente expressivo quando algo incomoda, se não acha lugar na cama, se está com vontade de ir embora. Já os sentimentos - considerando que os tenha em relação a mim - não expressa tanto, só quando instado a tal. 
Não sei se a gente se entende bem. Você me vê como as pessoas que me são próximas não me veem - mais fechada que aberta à interação. Acho que nem sempre você lê os gestos, como no abraço na esquina o pedido de um beijo e de "fica mais um pouco". Me sinto sempre tomando as iniciativas para não ficar no limbo do seu esquecimento, apesar de ser bem-recebida em minhas iniciativas.
Mas é fato que hoje, enquanto você estava aqui, te olhei de um jeito que não pensei ser mais possível: com cumplicidade, riso, silêncio, à vontade. Penso um pouco mais e edito: sejamos justos, sua sensibilidade não escapa a quem quer percebê-la. Seu cheiro me traz paz e eu que bem gostaria de passar mais algumas horas enrolando esse tanto de cabelo. Gosto da imagem, da fotografia mental composta pela minha mão fazendo carinho no seu rosto, nos seus traços fortes.

sábado, março 21, 2015

Que será isso?

Que será que quer dizer este sentimento pulsando no íntimo como aviso: medo? Insegurança? Reconhecimento de incompatibilidades? Adrenalina?
Jout Jout falava da "teoria da peneira" e de como somos levados a nos modificar - nossa personalidade para restar na peneira de outrem, ou nossa peneira para acolher quem queremos - para causar certos efeitos como engendrar um relacionamento em qualquer nível que seja. Por isso a necessidade de conhecer nossa peneira - em outros termos, conhecer nossas demandas, vontades, desejos, expectativas nas interações.
Levo isto realmente a sério. 
No fundo todo mundo gostaria de ser o primeiro a prever e a poder desistir do que fosse dar errado, não?

quinta-feira, março 19, 2015

Mais uma vez: o trabalho e os dias

Da criação e da criatividade, o ensino. Condicionados ao tempo, escolhemos as frases certas, exatas, pontuais, as explicações breves e funcionais. Apesar de tudo, a resposta positiva sempre me dá orgulho: ganhar dinheiro pode ser duro, mas não precisa ser leviano.

segunda-feira, março 16, 2015

O ovo da serpente

O tempo traz compreensão e experiência pro debate. Espero que ajude a diminuir o receio do futuro e das decisões coletivas. Um mal estar absurdo permeado pela sensação de não saber exatamente o tamanho do risco.
Ressaca energética, definiram.
Tudo muito errado de todos os lados.

sábado, março 14, 2015

Ingenuidades

No fim, meu resquício de crença na magia do mundo reside naquilo de que não suspeitei: nas promessas mais tolas e cheias de indício de mentiras. 
Mas do mundo e de outro me vem enfim um poema:

Eu sou o que rezo pra mim
Joguei fora todos os meus pertences
antes que eu já não os pertença
antes que eu adoeça de apego
antes que eu só viva o fora de mim
Fico com o que me é mais caro
Minha saúde
Minha disposição ao sorriso
Meu livro de escrever poemas
Minha mente livre
(ausente de dor)
e, é claro,
meus lânguidos amanheceres
que duram até o por do sol.
O segredo não é saber viver.
O segredo é viver sem saber sabendo que se sabe
e estando totalmente presente
no instante do nada que compõe o tudo em mim.
(via Negra Anastácia)

quinta-feira, março 12, 2015

Alvorada, o sonho de hoje

O sonho de hoje concerne ao sublime. 
Do alto do penhasco nós todos víamos as águas invadindo o campo e levando embora nossa guia da trilha. Foi carregada e jogada de um lado para o outro como se fosse uma pluma sob a força da correnteza até sumir na espuma. Nada fizemos - nem seria possível, ou?

Anna Bolenna

Pouco dinheiro, um tantico de rejeição, muita preocupação e tentativa, mas mais satisfação que frustrações, sejamos justos. 

terça-feira, março 10, 2015

"Você é a saudade de quem?"

Pixado na rua: 
"você é a saudade de quem?"
Aparentemente deve ser algo terrível, nesta perspectiva, não ter alguém ou não ser de alguém. Implicitamente se conduz à ideia de que se ninguém nutre por você uma paixão louca, doentia, dessas para toda a vida, você não deve ser lá grandes coisas. É como se o sentimento do outro em relação a você fosse um prêmio. 

segunda-feira, março 09, 2015

Não se faça

With no loving in our souls and no money in our coats,
you can't say we're satisfied.

Não se faça de interessado, este é o tipo de pergunta que não se deve fazer de volta sem querer verdadeiramente saber a resposta.

But you can't say we never tried.
Ou que eu não tentei.

terça-feira, março 03, 2015

Do cotidiano

Seis horas da tarde e o cheiro de incenso aparece não sei de onde - entra na casa pelas janelas ou ralos? Faz um pouco de frio e a cidade começa a ficar cinzenta nos fins de tarde sem horário de verão. Aos poucos resgatamos os agasalhos do baú e só o ritmo frenético dá uma pausa na nostalgia que sorrateiramente aparece e nos invade. 

domingo, março 01, 2015

Detalhe

Jeff Buckley e seus dentinhos, caninos salientes, aparecidos nas poucas vezes que ele sorria. Mas quando gritava, quando cantava invocando forças internas, fechava os olhos e contorcia o rosto numa careta que os deixava evidentes - os caninos.
Havia também a camiseta branca, larga, esgarçada. Vez ou outra a camisa xadrez, mas sempre as botas pretas pesadas.
E inexoravelmente o olhar perdido, angustiado, angustiante.

Fotografia

Quando você partiu, eu sentia dores físicas, no peito. Sufocamentos estranhos e vazios desconhecidos. Estive por dias irreconhecível. Mas, sobretudo as "dores não catalogadas no mundo físico".
E quando mal retornou, das primeiras coisas que me disse foi que sentia uma dor tão forte por ter deixado aos seus lá.
Eu te compreendo, neste ponto. Sei sim como é, mas não disse, pois não devo explicar certas coisas.
Conversamos amenidades e descrições de fotografia. Você me conta que tirou retratos, eu sou remetida imediatamente à leitura recém-acabada de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino: Cauby é fotógrafo e desperta para Lavínia por conta do retrato dela na loja do chinês - justo ela, que se interessava por fotografar tudo, menos retratos. Eu não saberia enunciar exatamente se era a luz, as feições, o olhar escuro ou o quê mais que o atraíam e que o levou a fotografá-la infinitas vezes, compondo o mural perfeito. Mas no final, da melhor fotografia, do derradeiro retrato, só faltou a prova material.

sábado, fevereiro 14, 2015

Sentidos

"Estou neste momento abraçando interna e intelectualmente esta obra de Jürgen Habermas chamada O Discurso Filosófico da Modernidade
A obra faz sentido. 
Há tempos não lia algo que me fizesse tanto sentido".  

Os sentidos voltaram a despertar ontem, de outras formas. Experiência válida e importante para contextualizar certas lembranças: aquelas foram boas, mas não necessariamente as melhores, nem as únicas, menos ainda as últimas. Existe um mundo mais simples e nele é possível tomar um café da manhã sem formalidades, conversando sem hierarquias intelectuais, sentindo-se verdadeiramente à vontade. 

domingo, fevereiro 08, 2015

Pergunte ao pó

I. Tirando a poeira da casa, refletia sobre a escrita. Mas eis que, do alto dos meus 25 anos, percebi que todas as vezes que se quiser enunciar O Mal, dever-se-ia simplesmente chamá-lo:
RINITE.
É um absurdo que seja possível desenvolver essas doenças tardiamente. Rinite sempre fora, para mim, uma alergia de crianças frágeis e tristonhas sem seus bichinhos de pelúcia para brincar. Ainda não aceito perder o sono por causa de uma crise de 20 espirros que mais parecem vir do útero.

II. Como seria possível fundar, engendrar um pensamento autônomo, uma espécie de ponto de partida da página 64? E todo o resto? Deveria ler primeiro para depois escrever, mesmo sob risco de formar um pensamento enviesado? 

III. Segundo pesquisas do Instituto Li Por Aí, alguns de meus personagens favoritos da literatura estão dentre os mais mal-humorados. Não sei se isso quer dizer alguma coisa, mas provavelmente que eu e o editor desse texto andamos lendo, recorrentemente, as mesmas poucas obras ao longo dos anos. Porque a literatura é algo tão vasto e não pode se reduzi-la às narrativas americanas e europeias, com um pouco de sorte sulamericanas. Que dizer do grande continente africano ignorado, de toda essa produção sobre a qual pouco sabemos? Quais são seus personagens, seus temas, seus estilos? 
Só aceitamos o Outro que é Eu Mesmo?

sábado, fevereiro 07, 2015

Carnaval

Carnaval na cabeça. Sei do batuque que em breve vai invadir as casas e acho tudo belo e inspirador, me desperta vontade de também sair às ruas, me fantasiar, esquecer da vida. Mas talvez esse seja o principal momento para prestar atenção nela:
a Vida.
O conceito filosófico, a relação real que cabe a mim e a mais ninguém. As decisões que me cabem e que ninguém pode resolver por mim. Os resultados que dependem de mim. O rumo da vida que - tragicamente - depende mais que nunca de mim. 

terça-feira, fevereiro 03, 2015

São Paulo

São Paulo, meu amor, minha cidade, fez 461 anos no meio da crise - ou como melhor definiria Eliane Brum, catástrofe - hídrica. São Paulo que, como ela diz, foi construída sobre seus superlativos, foi tornada passiva: 
- a cidade está sofrendo com a falta de água! 
A sentença não expõe os agentes, os sujeitos da crise: nós, população consumista, mas sobretudo da indústria e uma política vergonhosa.
Hoje eu lavei roupa com medo que não houvesse água para o banho - isso porque não fiquei sem água até hoje. Lavei roupa com medo que algum vizinho batesse à porta para me responsabilizar pela crise por meu consumo inconsciente. A falta de água nos transformou em vigilantes de nós mesmos. Os mecanismos de vigilância e controle se disseminaram pela sociedade, cada um observando seu círculo numa vigilância indiscreta e sem dono. Digno cenário foucaultiano.

O fazer

Da importância de fazer várias coisas:
aprendo muito, cada dia. 
Novas perspectivas sobre a própria língua em mutação e as dificuldades de quem se aventura em terra estrangeira. 
Novas cidades, culturas, olhares sobre guerra e paz. Sobre o momento, movimento e permanência. Sobre a centelha, a fração de vida de quem não sabe se, como nós, acordará amanhã para tomar um café amargo, pois sequer sabe se acordará e se haverá amanhã.
Novos ensinamentos e reforços sobre arte e vida. 

segunda-feira, fevereiro 02, 2015

Birdman e o voo do ego

Incomodamente, Birdman me fez reviver os muitos pesadelos que já tive a respeito de coisas que acho que que aconteceram, mas que não tenho certeza se realmente aconteceram.
Birdman enfiou a mão no meu peito e trouxe a sensação de me questionar, quando de todas aquelas situações em que estive sozinha ao conhecer alguém: mas isso aconteceu mesmo?
Essa noite aconteceu de verdade?
Aquela pessoa que conheci é uma pessoa real?
Estive falando sozinha ou para um nada materializado?
Voei pela cidade ou tomei um táxi?

sexta-feira, janeiro 23, 2015

Dureza

Você me escreveu um email direto e reto - no fim das contas, queria mesmo era cobrar se havia atendido ao seu pedido de ajuda. Não teve "tudo bem", "como você tá?", "como tão as coisas por aí?", e nem de longe qualquer indício de "tô com saudades".
Eu sei que já me disseram sobre o quão negativa pode ser essa tendência a interpretar as frases caçando sentidos ocultos. Sei que você tá ocupado com suas coisas, sei que pode ser seu jeito. Eu sei de todas essas coisas. Sei que deveria tentar ser compreensiva, que não deveria pensar tanto nisso.
Mas é que mais uma vez tocou um alarme ensurdecedor avisando sobre o quanto você não se importa e não está interessado, e que não é isso que quero pra mim. Dos grandes ensinamentos das relações livres estão o cuidado com o outro, que pode muito bem coabitar com nossa autonomia afetiva e personalidades independentes, do mundo. Não vejo cuidado algum ali nas suas palavras. Deve ser porque sequer há relação para se dizer livre. 

terça-feira, janeiro 20, 2015

Do que é feita a saudade

Saudade é feita de tempo, de lembrança, dos momentos materiais mas também de cheiro que não existe mais na cama, no travesseiro, nos lençois já trocados, nos cabelos e na pele já lavada e já tocada, retocada. 
Saudade é feita de "faz só um mês?", e de "mas o mês que vem vai passar rapidinho".
Saudade é feita de concordar com o "cada dia a mais é um a menos pro encontro acontecer". 
Saudade também se alimenta do incerto e neste campo do indeterminado se erguem os desejos para que os bons ventos soprem. 

segunda-feira, janeiro 19, 2015

Teia de aranha acariciando a nuca

Sentados no parque, domingo à tarde, travavam conhecimento pela primeira vez sobre suas vidas, propósitos, algumas ações e os melhores shows da vida, quando a mão alcançou a orelha - de súbito, ele se estapeou e afirmou, severo:
uma aranha.
Ela se levantou de um pulo e sentiu pela primeira o estômago se manifestar naquela tarde. Ela, que estava tranquila, justo perto dela uma aranha, de todos os seres abomináveis, justo uma aranha, justo ela.
Se recompuseram e a conversa reiniciava, mas qualquer vento já era - aranha andando pelo corpo, teia de aranha acariciando a nuca.  
Acho que a gente sentou embaixo de uma teia de aranha, concluíram, mas já era hora de partir e a distração estava feita.

quinta-feira, janeiro 15, 2015

O caderno

Alguém jogou fora um caderno de desenhos. Algumas anotações, mas essencialmente desenhos. O mistério e a beleza coabitavam nas páginas, nos traços, e o caderno foi resgatado por alguém disposto a encontrar seu dono -  a fim de restituí-lo ou para sanar sua curiosidade? Jamais saberemos. O dono não se manifestou. Daqui eu vejo, porém, que ele continua a desenhar. Alguns dias acha que seu trabalho não é bom o suficiente, outros dias pensa que o problema é com ele mesmo, pois trazer ao público sua arte é assumi-la,sustentá-la, justificá-la. Torná-la real, existente, efetiva, dar a ela um lugar no mundo exigiria também dele uma posição no mundo - para que houvesse sua arte, teria ele mesmo de existir. E quem é ele, quem seria ele? se pergunta. 

terça-feira, janeiro 13, 2015

A incrível história de um homem e seu tempo

Vamos lá: tomar um banho, comprar um sorvete, trabalhar. Temos um longo dia pela frente, dialogo comigo mesmo. Eu e minha mente temos de nos manter motivados, com foco e disposição, mas sobretudo com prazer nas atividades. O áudio, a aula, a escrita, tudo deve fazer sentido - do contrário, será um fardo.

A história começou para mim abruptamente, sem começo de fato, uma narrativa pela metade, sem saber origem, nem tema, nem identificação e nem final. A história de um homem cujo nome eu não conheço, e cujas lembranças só ouço a partir de um determinado momento da vida. Eu me ative à voz, ao sotaque foRte e fiRme que despertou uma lembrança, e que logo foi corroborada por uma notícia. 
Veredicto: lembranças atraem pessoas.

sábado, janeiro 10, 2015

Fez-se mar

Recorrentemente eu sonho com mar. com imensidão, vastidão.
Hoje eu me aventurava e entrava de peito aberto, porque o mar era calmo e eu tinha, parece, um controle. Inadvertidamente surgiu uma onda que me cobriu e tirou meus pés do chão; eu não sei nadar, mas simulava pensamentos sobre prender a respiração quando a onda me levantou, ficar calma, boiar, tentar manter a cabeça para fora. Então eu não era mais corpo, eu era só uma cabeça, um nariz, o par de olhos que enxergava a linha do mar logo no meu pescoço.
Mas eu, pela primeira vez na vida - ou no sonho, não tive medo, e num instante já estava em outro lugar, com os pés de volta ao chão.

quinta-feira, janeiro 08, 2015

A outra parte de mim

E enquanto isso, enquanto as resoluções são tomadas, me questiono igualmente (com menos força, mas me questiono, pois sim): que será que você anda fazendo?
Arrisco: observando o pôr-do-sol e acordando de madrugada. Escrevendo à noite, quando todos foram dormir. Fotografando e filmando, se equilibrando na barca, dormindo na rede.
Pensando em quê? Nem que pudesse, nem por mil caralhos voadores, não gostaria de saber. 
Teve tanta coisa de suas falas que eu guardei sem notar, que é como se eu pudesse reconstruir você - do meu jeito - a partir dessas lembranças vagas. 
Tenho consciência de que é a primeira vez que imagino coisas passíveis de serem reais. E entendo também o porquê de as pessoas quererem a certeza, um nome para isto, uma confirmação, um símbolo, uma cerimônia: conviver no aberto, no campo do possível, não é fácil. Mas quão sólidas são estas certezas quando se tratam do sentimento do outro, se sequer conhecemos direito os nossos?

As conversas mais sinceras

As conversas mais sinceras são sempre consigo mesmo. É quando são tomadas as grandes resoluções, as definitivas, as iluminadoras. É o momento em que Hank decide ser um novo homem e, veja bem, aquele cara que mal comia ao longo do livro começa a se alimentar direito.
Na minha lista de prioridades o dinheiro caiu de preocupação-mor para item secundário; necessário, porém secundário. Isto significa: ter o suficiente para pagar as contas, mas decididamente cortar os supérfluos. 
O mais difícil, porém, foi assumir que quero ter da vida algo bom, fazer um bom trabalho, algo do qual possa me orgulhar intimamente. 
Quando olhar para meus escritos, eu quero me ver ali.

segunda-feira, janeiro 05, 2015

Enquanto seu lobo não vem

As cidades guardam segredos, pensei eu, passando na Avenida Presidente Vargas que Caetano cantou em Tropicália. As cidades guardam surpresas, pensei eu, sob o céu dos fogos de artíficio, como aqueles que uniram Leonardo e Luisinha na Festa do Divino.
Rio de Janeiro tem vida. Voltei cheia de poesia, saudades, lembranças, inspiração.