segunda-feira, dezembro 04, 2017

O nome que não é seu

É um desconforto quando o nome não combina com a pessoa. Os pensamentos, os diálogos internos, as lembranças conectam-se com um outro nome, atribuído secretamente para satisfazer a adequação. Pode ocorrer de a voz não cumprir a correspondência e é como se houvesse uma dublagem de si mesmo.

Eu retomo aos poucos esses breves pensamentos por escrito. Senti que nos últimos tempos a minha voz silenciou, também interiormente, talvez resultado de tanta fala arrogantemente corrigida. Parece uma questão de agora retomar espaço, de permitir o ensaio, o erro, a elaboração. Acho que por isso retornam também as lembranças; mas se a roda da vida insiste em conduzir ao mesmo lugar de um desenvolvimento cíclico, é possível se alçar a um novo patamar, a um novo círculo sobreposto. 

domingo, novembro 12, 2017

Natureza

Há épocas em que tudo conflui para o surgimento e maturação de um pensamento. Está ali nos textos científicos, no grande romance de formação, na conversa pelo celular, nos cabelos brancos: a natureza.
E não deveria ser diferente. A natureza está ali antes de tudo; antes da arte, antes de pensar as formas sólidas, as curvas, a arquitetura, está a pedra, a madeira, sobretudo o solo. Terra, chão, seja para baixo, nas construções subterrâneas, seja para cima, nas colunas, nos templos, na cabana, nas casas, nos arranha-céus, o solo é o elemento imprescindível. Haverá quem sabe, ou está em vias de existir, uma arquitetura em ar, pairando sem base? Até lá terra é o elemento comum de tudo isto que se expressa em e constitui o espaço, em suas produções no tempo, transformando a natureza. 

sábado, setembro 30, 2017

O tempo da ternura

Dava pra sentir o cheiro dali. A voz veio da cadeira na fileira atrás da minha e o hálito alcançou meu nariz - tocou a pele do pescoço, a parte descoberta do ombro, os fios de cabelos que sobravam do rabo de cavalo alto, impregnou nos brincos grandes de formas geométricas. Era uma correção filológica, mas eu sentia e ouvia respiração ruidosa já há alguns minutos na cadeira atrás da minha, indicando que estava muito próximo.
Mas nem era exatamente sobre isso que eu pretendia falar, só que não consigo distinguir todas essas cenas, separá-las, torná-las individuais. São um embolado, um emaranhado de lembranças de eventos diferentes: as mãos grandes, brancas, limpas, pousadas sobre a mesa, os braços fortes que, um dia descobri, quase não têm pêlos. Minha própria mão direita tocando outro braço igualmente forte, um gesto irrefletido, denunciador, logo depois de separar do abraço genuinamente empolgado que recebi, um gesto que desmascarava minha vontade de prosseguir em contato. A perplexidade ao reconhecer dois seres muito parecidos sentados lado a lado. A sensação de fim de temporada, de ciclos se encerrando não só para mim, mas para os que me são próximos, e de novos personagens surgindo. Uma história, uma foto, a pensabilidade agindo: eu quis dizer tome cuidado, eu quis dizer observe, espere, cuide para não se magoar nem magoar os outros, mas que sei eu sobre certos sentimentos, sobre essas mitologias individuais? Então eu nada disse, e pensei, e sigo pensando e tentando organizar argumentos, aplicando a mim mesma o recado: tome cuidado, observe, espere, cuide para não se magoar nem magoar os outros.

domingo, agosto 06, 2017

quinta-feira, julho 27, 2017

Mal de origem

A moça dizia:
Religião, psicanálise, terapias alternativas, psicotrópicos, nada disso vai nos redimir do fato de que vivemos mal como sociedade. Cura-se instantaneamente o trauma, a raiva, a angústia, a depressão, contornam-se as tentativas de suicídio, mas o problema continua aí: muito trabalho, pouco sono, má alimentação, relações sociais e afetivas frágeis; muito esforço e empenho e pouco retorno. O contexto favorece as doenças, os distúrbios, e embora o tratamento seja preciso, não resolve o problema na origem.

O cara estendeu a mão vacilante, desconcertado com a reação ingênua: preciso disso pra comprar minha droga, pagar minha dívida na boca, alimentar meus filhos mas aquilo nem é família, deus me perdoe. 
- Mas com isso aqui não dá pra fazer tanta coisa - foi a resposta.
Eu tenho é nada e você não sabe como é isso. Vai fazer menos falta pra você do que faria pra mim se eu não tiver isso agora. 
De um lado o pedido de não por favor e uma revolta, uma frustração, do outro lado aquilo que a experiência própria não alcança: como é estar a zero no mundo, ser invisível, ter nada. Há muito mais nisso do que a concepção maniqueísta tenta fazer encaixar: é possível ser infrator sem ser sádico, sentir raiva sem desejar punição.  

domingo, julho 23, 2017

soft and only, lost and lonely, strange as angels

Coisas que se situam no limiar entre a ternura delicada e a tristeza sem motivo e suscitam sentimentos confusos e intempestivos:
o casal de velhinhos na plataforma do metrô Sumaré, 11h. Desceram as escadas e subitamente trocaram um beijo, segurando com força as mãos. Começaram a observar as ruas através das paredes de vidro; apontavam direções, descreviam algo, pareciam um novo casal velho;
o jeito como você fala da sua irmã e carinho para com aqueles dois postais;
o sonho feliz que precedeu a morte do animal de estimação.

segunda-feira, julho 10, 2017

O que vem depois do desejo

O que existe depois de tanto desejar, de querer o outro, lembrar a voz, o trejeito, a sensação no corpo quando próximos mas não juntos - nunca juntos, a impossibilidade - ... ?
Será que alguma hora o desejo se esgota em tanto querer, mesmo sem consumação? 
Será que depois de tanto daydream e de imaginar todas as possibilidades de encontro, todas as configurações de aproximação, de primeiro toque, de primeiro beijo, de primeira foda, de primeiro gozo, será que ainda sobra desejo ou esse já se pulverizou na imaginação?
Isto é - como dar cabo de um desejo que não deveria existir?

sábado, junho 17, 2017

Se você deixar o coração bater sem medo

Se deixar o coração bater sem medo a gente vive assim, essas pequenas saudades. Pequenas interdições cotidianas: não é possível ter o abraço porque o corpo não alcança a distância. Pode ser que dê pra remediar falando de bobagens, trocando foto, receita, contando as coisinhas, mas os pedacinhos estão, sim, espalhados, e não poderia ser diferente. Não fosse assim, talvez não fôssemos nós; a gente se torna o que é nas escolhas. 

Se deixar o coração bater sem medo a gente bate na parede vez em quando. Uma confusão danada esse seu cheiro de cigarro e de coisa diferente, de surpresa escondida debaixo da voz, desvelando aos poucos a personalidade no jeito de menino do interior educado, certinho, em outro ritmo. Mas não pode ser, não vai ser por muitos motivos; tudo errado é o veredicto de que suspeitei desde o começo. Tem umas ingratidões em certas ocupações que a gente assume; uma delas é tentar conduzir as pessoas no caminho da descoberta de potencialidades, daquilo de que são capazes, mas parte disso é deixar partir também enquanto parece que a gente fica parado no mesmo lugar. Olhando as fotos acho que me bateu com força a percepção de que pra todos já há algo, a partitura já escrita, ou, como agora, escrita em tempo real. Não é possível saber disso e conviver com o sentimento; é preciso interrompê-lo, não alimentá-lo, deixá-lo à míngua até morrer, secar e voar por aí num sopro.
Meu nome é nuvem, ventania, flor de vento.

sexta-feira, maio 12, 2017

Pelas ruas

Você sabe, é que parece a mesma coisa. As pessoas estão sempre nos mesmos lugares, no protocolo do agir e do performar. Não é ruim, só é igual, e de tão igual, poderia ser tudo a mesma coisa, ou nada, que daria no mesmo. Com isso se esvai em mim a sensação de que algo - uma conversa, palavra, piada, toque, em qualquer instância - foi realmente única, e isso constitui a ilusão perdida.
E você sabe: nem todos os discos, nem os cafés, nem as fotos, nada disso vai nos livrar de encarar que, fatalmente, vai ficar o núcleo duro e só, o que vai ficar é a voz interna quando a gente põe a cabeça no travesseiro e fecha o olho, logo antes de dormir.  

domingo, abril 23, 2017

O que a maré não viu

Havia tempo
mas só para algumas coisas.

VOCÊ ACREDITA
Em sorte, em jogar na loteria?
Em superstições da ordem de signos, símbolos, sonhos?
Em intuição, inveja, azar?
Em verdades, certezas?
Em amor?
Em méritos próprios?
Em vida extraterrena,
extrassolar?
Em outras dimensões espaciais?

TESTAMENTO
Não sei escrever poesia nem ficção, malemá uns ensaios sobre temas restritos. Sei dar aulas de idioma estrangeiro, cozinhar doce e salgado, sei alguns romances, sei fazer reformas simples e costurar. Aprendo continuamente filosofia. Não tenho talento para plantas, flores; aprendi violão quando jovem, tenho curiosidade incessante por música, pouco tino para relações sociais, meia dúzia de amigos próximos e uma família-base. De dinheiro tenho o mínimo, e vontade enorme de uma coisa principal: adotar um gato. A crença que cultivo é ao mesmo tempo a mais ingênua e mais pretensiosa: no futuro. 

terça-feira, janeiro 03, 2017

Poesia no KZ

Como é possível surgir - em meio ao trabalho, ao gás, à morte, à fome - falha e discreta poesia? Primo Levi mostra o italiano ao Pikolo, esta espécie anacrônica de office boy e estagiário, declamando a Divina Comédia, recitando o inferno dantesco no inferno dos homens. Tem urgência de explicar, traduzir; ele, que vencia os dias sem visão de largo alcance, sem pensamento que não o provisório, e regozijava da espera, de não ter que chutar para longe as horas, agora tinha pressa: é preciso que se compreenda o sentido até então não-desvelado para ele mesmo do Canto de Ulisses e da anunciação da sua morte. 
Há o tempo dos homens livres, o tempo dos condenados em nível que língua alguma é ou será capaz de exprimir, e o tempo da poesia. 
"Para os homens vivos, as unidades de tempo têm sempre um valor, tanto maior quanto mais elevados são os recursos interiores de quem as percorre; mas para nós horas, dias, meses fluíam lentos do futuro para o passado, sempre lentos demais, matéria vil e supérflua de que tratávamos de nos livrar depressa"