quinta-feira, julho 27, 2017

Mal de origem

A moça dizia:
Religião, psicanálise, terapias alternativas, psicotrópicos, nada disso vai nos redimir do fato de que vivemos mal como sociedade. Cura-se instantaneamente o trauma, a raiva, a angústia, a depressão, contornam-se as tentativas de suicídio, mas o problema continua aí: muito trabalho, pouco sono, má alimentação, relações sociais e afetivas frágeis; muito esforço e empenho e pouco retorno. O contexto favorece as doenças, os distúrbios, e embora o tratamento seja preciso, não resolve o problema na origem.

O cara estendeu a mão vacilante, desconcertado com a reação ingênua: preciso disso pra comprar minha droga, pagar minha dívida na boca, alimentar meus filhos mas aquilo nem é família, deus me perdoe. 
- Mas com isso aqui não dá pra fazer tanta coisa - foi a resposta.
Eu tenho é nada e você não sabe como é isso. Vai fazer menos falta pra você do que faria pra mim se eu não tiver isso agora. 
De um lado o pedido de não por favor e uma revolta, uma frustração, do outro lado aquilo que a experiência própria não alcança: como é estar a zero no mundo, ser invisível, ter nada. Há muito mais nisso do que a concepção maniqueísta tenta fazer encaixar: é possível ser infrator sem ser sádico, sentir raiva sem desejar punição.