quinta-feira, julho 27, 2017

Mal de origem

A moça dizia:
Religião, psicanálise, terapias alternativas, psicotrópicos, nada disso vai nos redimir do fato de que vivemos mal como sociedade. Cura-se instantaneamente o trauma, a raiva, a angústia, a depressão, contornam-se as tentativas de suicídio, mas o problema continua aí: muito trabalho, pouco sono, má alimentação, relações sociais e afetivas frágeis; muito esforço e empenho e pouco retorno. O contexto favorece as doenças, os distúrbios, e embora o tratamento seja preciso, não resolve o problema na origem.

O cara estendeu a mão vacilante, desconcertado com a reação ingênua: preciso disso pra comprar minha droga, pagar minha dívida na boca, alimentar meus filhos mas aquilo nem é família, deus me perdoe. 
- Mas com isso aqui não dá pra fazer tanta coisa - foi a resposta.
Eu tenho é nada e você não sabe como é isso. Vai fazer menos falta pra você do que faria pra mim se eu não tiver isso agora. 
De um lado o pedido de não por favor e uma revolta, uma frustração, do outro lado aquilo que a experiência própria não alcança: como é estar a zero no mundo, ser invisível, ter nada. Há muito mais nisso do que a concepção maniqueísta tenta fazer encaixar: é possível ser infrator sem ser sádico, sentir raiva sem desejar punição.  

domingo, julho 23, 2017

soft and only, lost and lonely, strange as angels

Coisas que se situam no limiar entre a ternura delicada e a tristeza sem motivo e suscitam sentimentos confusos e intempestivos:
o casal de velhinhos na plataforma do metrô Sumaré, 11h. Desceram as escadas e subitamente trocaram um beijo, segurando com força as mãos. Começaram a observar as ruas através das paredes de vidro; apontavam direções, descreviam algo, pareciam um novo casal velho;
o jeito como você fala da sua irmã e carinho para com aqueles dois postais;
o sonho feliz que precedeu a morte do animal de estimação.

segunda-feira, julho 10, 2017

O que vem depois do desejo

O que existe depois de tanto desejar, de querer o outro, lembrar a voz, o trejeito, a sensação no corpo quando próximos mas não juntos - nunca juntos, a impossibilidade - ... ?
Será que alguma hora o desejo se esgota em tanto querer, mesmo sem consumação? 
Será que depois de tanto daydream e de imaginar todas as possibilidades de encontro, todas as configurações de aproximação, de primeiro toque, de primeiro beijo, de primeira foda, de primeiro gozo, será que ainda sobra desejo ou esse já se pulverizou na imaginação?
Isto é - como dar cabo de um desejo que não deveria existir?