quarta-feira, setembro 23, 2015

Arte dos últimos dias

Katharina und José
Na estante de livros para doação, num lugar insólito, encontrei uma surpresa. O idioma na lombada me pasmou, mas não mais do que quando abri o livro e dei de cara com uma dedicatória na primeira página: de Katharina pra José. Katharina presentou em 22 de fevereiro de 2009 o querido José por seu aniversário com um livro, "um dos romances alemães mais bem-sucedidos do pós-guerra", que ela já lera e a empolgara. Ganhei um sorriso ainda maior que aquele que habitou - todo meu corpo, diga-se de passagem - no fim do domingo e início da segunda. Estou profundamente curiosa com die Vermessung der Welt, como se este livro tivesse me esperado ali.

Das "comédias" profundas
Um tempo atrás, quando morava com uns amigos, havia uma senhora que limpava nossa casa. Era uma sensação bizarra alguém cuidando de minha sujeira, coisa da qual eu até então sempre me encarregara. Na época não me era incômodo, a situação só beirava a estranheza.
ontem [na verdade, há uma semana] assisti Que horas ela volta e saí com essa lembrança martelando. Na minha sessão as pessoas aplaudiam momentos claramente trágicos, dramáticos, porque pra elas era tudo exótico, engraçado (ou pior, "engraçadinho"): a empregada com  sotaque diferente; a filha cheia de sonhos sobre os quais, coitadinha, não conhece os limites; a menção ao cantinho no Campo Limpo; a condescendência sob a forma do "como da família"; a arquitetura da exclusão do quartinho da empregada, entulhando os eletrodomésticos conquistados com muito suor - do trabalho e das noites quentes em cômodos sufocantes, disputados com insetos, noites das quais o ventilador não dá conta. 
O filme é "simples", a história todos conhecemos, em diversas profundidades. Mas a mensagem é acessível, tocante. Parecia que estavam falando de nossas famílias. de nossas relações de classe, de nossas mães, tias e avós que criaram suas famílias - e a família de outras pessoas ao providenciar a comida, a limpeza, o carinho que seus próprios filhos não tiveram. Mas o final, o final me apertou o coração: uma perspectiva boa, um olhar atento a como interromper o ciclo. Mulheres fortes, mesmo ali, "romanceadas", me dão esperança.

terça-feira, setembro 15, 2015

Sinfonia

Sinfonia no ônibus: brecada brusca. Eu estava de frente e vi a movimentação uniforme, uma onda, a mocinha no degrau tombou lentamente, em câmera lenta. Seguraram-na como fazendo uma rede às costas. Um segundo e todos recompostos, o ônibus seguiu.
Lembrei de Drummond: 
stop! a vida parou. Ou foi o automóvel?

domingo, setembro 13, 2015

Um mês e mais

Um mês e mais durou o estado de tesão prolongado. Quanto tempo exatamente eu não sei: não me lembro de nossa primeira conversa, embora lembre bem do primeiro olhar. E do último, quem sabe. Mas foi algo como um mês ou dois meses em que eu me questionava sobre estas coisas nunca antes sentidas tão internamente, intensamente. E eu, que quase não conseguia escrever sobre você no "durante", encontro umas palavras tortas no fim. Eu fui contando a vida pelos fins de semana, criando uma espécie de certeza fajuta, ignorando a iminência da falta. E então é chegado o dia: estou comigo novamente, e só. E que isso baste. 

sexta-feira, setembro 04, 2015

Êxodos e essa dor que não é nossa

Nos comovemos e declaramos o quão tristes nos sentimos com a imagem do "garoto sírio", o quanto essa imagem nos tocou porque temos irmãos/sobrinhos/pessoas queridas em situação/idade semelhante. No fundo o egoísmo reduz a questão a "senti compaixão porque poderia ser um dos meus", mas a barbárie do fato reside em que Aylan Kurdi era uma pessoa e apenas isso deveria bastar para notar o horror. Isso não é sobre nós, que falamos do alto da nossa segurança física, emocional, financeira, mas sobre as muitas, incontáveis pessoas em situação de desespero e desamparo. 
O que fez o mundo despertar para a existência - que não é de hoje - destas pessoas? Arrisco que um dos destino dos atuais fluxos migratórios, isto é, o solo europeu, fez a realidade bater a porta. Afinal, o êxodo sempre existiu, com a diferença de quem eram os envolvidos, de onde iam e para onde iam. Na série fotográfica Êxodos Sebastião Salgado documentou este movimento entre realidades esquecidas, entre países desconhecidos, de caminhos de seis meses em mata fechada para chegar em algum lugar - e ser mandado de volta. Ninguém atentava para estes deslocamentos populacionais, como se fosse normal ter de fugir do seu próprio país por conta da fome, da pobreza, da intolerância religiosa, e lançar-se em países nos quais só encontram novamente fome, pobreza, intolerância religiosa e rejeição. Indonésia, Vietnã, Ruanda, Burundi, Curdistão. Quem os conhece, quem os nomeia? O horror sempre existiu, mas só foi descoberto quando bateu às portas do território "higienizado e civilizado", que exerceu e segue exercendo toda sua capacidade civilizatória construindo muros - físicos, e ideológicos - e transportando mais uma vez pessoas em caminhões para lugares não-explicados.