quinta-feira, dezembro 22, 2016

Saber do espaço

Por um fio, o corpo encostado no meu, o corpo quente cheio de dúvidas, maravilhado de descobertas, prenhe de força e de agora. Discutimos tudo e nada. A partitura já está escrita para cada um e acompanhamos um movimento juntos num quarto esfumaçado. É um desafio: chegar, manter, ir. A chave é o espaço, mais que o tempo: perto, longe, junto, equilibrar o espaço. 

sábado, dezembro 10, 2016

Ciclico

Me presenteia com uma tempestade, um presente que vem atrasado em alguns anos. Significa reconhecimento e visão horizontal, coisas que talvez eu mesma não reconhecesse um tempo atrás, só tinha vestígios da necessidade disso sob a forma de uma confusão e do desconforto por tudo aquilo que me subestimava. Rola um desenvolvimento brutal nessas idas e vindas; o corpo muda, a mente expande, os sonhos condensam. A personalidade assume caráter de urgência, como a alma transbordando pelos poros em Teresa de Kundera. 

sexta-feira, novembro 11, 2016

Hey, That's No Way To Say Goodbye

Ainda que a arte tenha esse quê de eterna, o que fazer da morte do artista?

domingo, outubro 23, 2016

Paraíso, 19/10, 11h30

O velho na calçada abordava as pessoas, mas ninguém queria comprar nada - tampouco ele queria vender, só distribuía medalhas de Nossa Senhora. Deve se tratar de alguma promessa, pensei, e lembrei das salas de santuário que visitei quando criança e nos inúmeros testemunhos de pagamento de promessas: próteses, recortes de jornal, cartas, mórbidos materiais de agradecimento. E o cheiro de vela.  
Mas no momento do velho das medalhas em vez de cheiro de vela, havia o cheiro de milho cozido, que invadia a estação de metrô. Um cego esperava placidamente, a cabeça levantada, capturando sons. Motor, conversa, passos, buzina. E o cego sorria como quem vê algo que os demais não notam; talvez as primeiras notas escapando do violino que um rapaz começara a afinar dentro da estação.
Do lado de fora eu andava e observava os prédios. Uma igreja, prédios espelhados de gente de negócio, comércios informais, padarias de esquina com mesas na calçada, postos de gasolina. Escola alemã. Supermercado, lotérica, papelaria. No fim da rua uma feira, e então: cheiro de pastel, gosto doce de morango, ácido do abacaxi, cheiro de peixe. O rapaz do alho que oferece o produto sem olhar nos olhos e depois desvia da gente como quem foge do diabo. Bom dia, morena; bom dia, menina: mantenho os fones de ouvido mesmo sem música. Uma velha japonesa passa lépida com o carrinho cheio. 

quarta-feira, outubro 05, 2016

Mar aberto, mar adentro

Lugares: sempre sonho que estou em mar aberto, por vezes me afogo. Fato é que é sempre um fascínio, o sublime, o imensurável, o temor. Um lapso no tempo e a onda me cobre, enorme, escura, profunda, no sonho sinto a textura da água. É o chamado retorno ao seio do mundo; um chamado de retorno, bem sei. A onda indo e vindo no corpo, a cabeça pende pra trás, o mar é uma coisa descabida.
Uma vez, em Florianópolis, fiquei ilhada com outras pessoas após uma trilha mal-sucedida. Chovia, não havia como retornar, estávamos despreparados - de chinelo e passávamos frio. Um barco buscou aos poucos as vinte pessoas na mesma situação que eu, e nada até então me preparara para a sensação de estar levemente à deriva em mar aberto, um barco minúsculo na imensidão profunda feito boca da noite, as ondas tocavam a beirada do barco, mar revolto, o barco balançava, a distância entre a beira da onda e a beira do barco diminuía ferozmente. Pessoas vomitavam, sentiam vertigem. Lembro de pensar que facilmente poderíamos morrer ali. O barco foi contornando a praia, a encosta montanhosa apareceu imponente: o que antes era prainha agora era verde que descia até tocar o mar, verde-azul, azul escuro. Nós, o mar, o mato, o céu. Eu nunca vou me esquecer do impacto disso, da dimensão do meu tamanho ínfimo, da minha existência frágil, naquele sem-fim. Meus olhos enchem dágua como se eu estivesse lá ainda agora.

sábado, setembro 24, 2016

Sobre dois ou mais

Sem disfarces, sem carão, sem pose. Quanto mais as relações se aproximam da essência, para além das embalagens e das atribuições externas, mais puras podem ser. Talvez não sejam mais fáceis, mas ao menos mais sinceras, mesmo quando dolorosamente sinceras.
Minha formação não me resume. Meu trabalho não me resume, meu corpo, meu rosto, minhas marcas, nada disso esgota o que sou. Todas essas coisas me compõem, mas não me definem.

terça-feira, setembro 20, 2016

Aquarius, mar e lembrança

Mar revolto
Vi o mar pela primeira vez quando eu já era adulta. Um fascínio. Desde então, faço menos visitas à praia do que eu gostaria, mas estive todos os anos - fisicamente. Porque em sonhos estou sempre no mar. O pesadelo mais frequente que me acomete é o da onda me cobrindo, eu estou no mar mas também estou de fora, duplicada, vendo e vivendo a cena. É uma coisa mais cinematográfica.
O mar é o sublime, o que causa medo e curiosidade, o sem-fim. Como é nadar no mar? me pergunto.  

Sônia-Braga-Clara, a moça bonita da praia de Boa Viagem
Sônia Braga saindo do mar em Aquarius, de maiô preto, os longos e fartos cabelos negros, a pele pedindo para ser filmada, a postura de quem é por si, em cada pequeno gesto, uma força. Houve alguma cena em que definitivamente me senti eletrizada pela visão de Sônia-Braga-Clara.

Os fantasmas e lembranças que habitam móveis e casas
Aquarius, sobre o qual eu não tinha ideia formada, diz muito no não-dito. A empregada do passado que habita atual a casa fortalece a tensão, mas não só ela. O móvel de madeira, prenhe das lembranças sexuais da tia idosa, é a presença daquilo que se quer negar: o velho vive, a despeito das tentativas de encerrá-lo em lugares seguros, limpos, estéreis. Vive uma vida plena, resiste e entende o peso da vida. Quando pressionada a vender o apartamento mediante o valor exorbitante oferecido pela construtora, Clara exclama: mas aqui é Boa Viagem! Os lugares têm peso, representam um papel. O batente cor de creme, as grandes taças de vinho, o sofá, o guarda-roupa, a cama, os objetos no criado-mudo, tudo isso é testemunha de uma história. E o livro - que momento! A filha de Clara, Ana Paula, deixa escapar, com tom de crítica, que a mãe abandonara os filhos por dois anos para viajar ao exterior, deixando-os aos cuidados do pai. À esquerda da fala da Ana, um dos filhos de Clara se levanta, aproxima-se da estante, recolhe um livro e retorna, pousando-o no colo da irmã. O livro é de Clara, resultado de sua pesquisa sobre Villa-Lobos, e a dedicatória, dolorida, é aos filhos e ao tempo que lhes fora roubado.
Esse livro e sua dedicatória condensam a história de uma família.

segunda-feira, setembro 05, 2016

O tempo da lembrança

A lembrança se localiza no tempo real ou possui uma duração própria? Isto é: lembrar de um fato restitui o desenvolvimento original ou cria um percurso temporal novo? 
Como transcorre o tempo na lembrança?
Me parece possível condensar a lembrança, transformando meses a fio em um só ato de rememoração; da mesma forma, parece que dá pra estender uma ação, desdobrá-la em sequências e ângulos.

Mas como? O que é que se estende e condensa? Qual a matéria da lembrança? 

quarta-feira, agosto 31, 2016

GOLPE


GOLPE

segunda-feira, agosto 29, 2016

Patti Smith holding a feather in Paris, 1969.

A foto de Patti Smith que mais tem efeito sobre mim não é de autoria de Mapplethorpe - talvez justamente porque nos retratos de Patti por Mapplethorpe se veja mais o próprio Mapplethorpe que Patti, comentário que ela atribui, em sua biografia, ao ex-marido Fred Sonic Smith. Já na foto de Linda Smith Bianucci (sou levada a crer que se trata da irmã de Patti, Linda Smith, que a acompanhara na primeira viagem por Paris, em 1969) Patti segura uma pena na mão direita, polegar e indicador formando um elo, enquanto mantém a mão esquerda aberta em concha, numa espécie de pedido, invocação mágica. A pena - branca e leve - contrasta com a gola alta preta de Patti Smith e com a seriedade dos seus traços, a boca rasgada, o olhar firme, o nariz altivo. Não há como evitar as interpretações, Patti sempre fora adepta de simbolismos, compartilhando tal predileção com Mapplethorpe. A convivência dos dois era marcada pelos objetos: trocavam presentes exclusivos, feitos pelas próprias mãos, sobretudo em datas especiais e épocas difíceis. Modelavam e transformavam o lixo, o descarte, neles mesmos, no reflexo da relação pura e única. "Ninguém vê o mundo como nós, Patti", diria Mapplethorpe.  
Por isso Só garotos me foi um livro triste e bonito. É o retrato de uma relação intimista e douradoura, daquelas em que, admito, pouco acredito. Enquanto lia tinha por vezes a sensação de que Patti se doara muito mais à relação que Mapplethorpe, mas certos detalhes e vivências pertencem a um delicado campo, difícil de descrever. Mapplethorpe era egocêntrico e intransigente, enquanto a força de Patti residia numa resistência outra. Um dos momentos significativos do livro é quando ela fala de Warhol, que Mapplethorpe tinha na mais alta conta porque refletia o mundo - mas Patti não queria refletir o mundo e sim mudá-lo.   
Por essas declarações Só garotos é mais do que o retrato da relação intimista de Patti e Mapplethorpe e sim o retrato artístico de uma geração, dos anos 60/70, pela menina que amava Rimbaud e queria ser poeta, mas despertou para a música com Jim Morrison: ao vê-lo, narra, percebeu que poderia fazer aquilo também. E assim se tornou uma artista de rock'n roll.

sexta-feira, agosto 19, 2016

Fluxo

Ulysses é fluxo, ritmo. É um tempo que se distende na leitura acrescido do tempo de sorrir com as inovações e neologismos - muitos, mais do que em qualquer livro visto antes. E as descrições, ah, como fogem do óbvio; formam um quadro que se destaca da página e de repente uma cena parece pairar sobre o livro, uma paisagem habilmente construída na matéria da imaginação mas contendo cheiro, sons, gosto, presença. A narrativa capta de modo insano a constituição do pensamento, até mesmo os incompletos, os fragmentos, os debates internos. 

terça-feira, agosto 02, 2016

Entre deuses e homens

Uma nova mitologia não é exatamente um objeto recente de discussão. Na nascente do idealismo alemão já se discutia essa possibilidade - ou necessidade - ora pelo reavivamento da mitologia antiga, ora pelo aventamento da construção de uma nova mitologia suficientemente capaz de se relacionar com os aspectos do mundo moderno. Mas o que seria para o mundo atual uma mitologia? Haveria, em verdade, espaço para mitologia e deuses? Quais seriam nossos deuses? E o que seria feito dos deuses antigos?
Deuses americanos
, de Neil Gaiman, carrega muitas dessas indagações que habitam o seio do mundo e do pensamento comum. A tese de Gaiman é a de que quando os povos migram, levam consigo seus deuses. Com um pouco de sorte, esses deuses conseguem se estabelecer na nova terra e prosperar, alimentando-se do culto e da adoração. Mas de um modo geral passaram a ser esquecidos no novo continente americano, e sem o alimento da memória, perecem e definham em seu poder.
O processo se agrava com o surgimento de novos deuses - Media, que fala aos homens de modo sedutor pela televisão; o deus da técnica, um adolescente revoltado e confuso - que se valem de novos golpes e formas de admoestação. No livro de Gaiman, o conflito entre as gerações mitológicas antiga e nova desemboca em uma guerra no solo americano transformado em ambiente de magia e do improvável, tão caro à literatura fantástica de Gaiman. E o diagnóstico pesa mais em favor do homem, que de criatura se converte em criador. 

sexta-feira, julho 22, 2016

Fragmentos: A fabricação da memória

Lendo A morte do pai, de Karl Ove, considerei já o início digno de observação: vale a pena se deter nas páginas iniciais sobre a morte. 

Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para

A morte: Karl Ove destaca os dois lados desse fenômeno, a saber, a morte em si, como entidade, como representação, a que aparece nos noticiários, que ronda o cotidiano e que pagamos por tabela para acompanhar em diversas manifestações midiáticas; e a morte física, o cadáver que choca e que deve ser imediatamente tirado de cena, do alcance do olhar, uma espécie de insulto. Entre estes dois lados parece não haver ligação, entre a morte sem peso, sem profundidade, imagem pairando na tela, palavra MORTE, e o cadáver, o corpo morto, material a ser transportado e aniquilado urgentemente; daí que atribua à morte um papel ambíguo.
Quando a morte ressurge no livro, agora encarnada na morte do pai do protagonista, traz consigo outro aspecto que chama atenção: a fabricação da memória. Prestes a tomar um voo para acompanhar os processos do enterro, no saguão do aeroporto surge a lembrança do pai numa ocasião da infância. Ocorre uma breve retrospectiva do que acontecera entre aquela lembrança e o momento da morte. De súbito, porém, surge ao protagonista a lembrança do rosto do pai desta vez caracterizado num ambiente específico e acompanhado da descrição dos trajes e do contexto. Mas a imagem não parece corresponder à nenhuma situação real.
Se não era uma lembrança, era o quê? - questiona Karl Ove.

A fabricação da memória é um tema interessante. Penso que é comum termos dúvidas sobre a veracidade de certas lembranças, mas algo me intriga especialmente: tempos atrás lembro de ter lido acerca de memórias compartilhadas por diversas pessoas sobre fatos que não existiram. É desafiador pensar na reprodução de algo que não existe - nesse sentido, falaríamos antes de produção. Pode-se pensar que a imaginação, enquanto capacidade re(produtiva), deve operar uma espécie de síntese entre as estruturas de conhecimento comuns a todos e os fatos empíricos, o que levaria a crer que todos os participantes dessa imagem não-existente fabricada poderiam, então, ter experimentado algo muito particular, um arranjo específico dos dados empíricos, uma influência enviesada, o que quer que seja que os permitisse criar algo até então inexistente.

Não avanço muito no assunto, mas ele me persegue em fragmentos por dias até terminar a leitura. E continua enquanto mergulho em outros temas, enquanto vivo e falo da vida, justamente como instância de unificação.

segunda-feira, julho 18, 2016

Não

Às vezes parece que também não é isso. Não é a camisa deslocada, o modo mecânico de andar, a oferta da cadeira, a frieza, os mullets, a falta de tesão, a religiosidade escapando no discurso, nem sei se um pequeno momento, um jeito, uma coisa assim, um movimento que aí não se pôde mais gostar direito. Palavra errada, nada nada; e mais: sou tímida e teve o negócio de perguntar o signo
escorpião
sagitário
não-sei-que-lá
ficou um papo de otário, até ia sendo bom.
Mas aquela coisa toda e sempre o mesmo: com alguns homens fui feliz, com outros fui mulher e hoje percebo que mais sinto falta do sentimento provocado que dos indivíduos; oscilo entre muito amor e um enfado, um tédio emocional, há tempos as pessoas se repetem, se complicam, não se aprofundam e nem sei se quero. Certos desgraçamentos da cabeça se transmitem, mas eu sei quais problemas não são meus.
Deve haver uma transa qualquer. Eu não sou mulher da vida de ninguém porque não pertenço à vida de ninguém, sou do meu silêncio e é só do que quero ser. Eu sinto uma espécie de peso do mundo e compreendo a necessidade literária de desvanescimento, sumir no mundo sem deixar rastro, traço, pra mim mais fácil pois não há quem documente e testemunhe de modo integral minha história.

terça-feira, julho 05, 2016

amor da cabeça aos pés

A linha de baixo dá o tom e a mensagem plena: antes de você ser eu sou
eu sou
eu sou amor
da cabeça aos pés

E só tô beijando o rosto de quem dá valor
Pra quem vale mais o gosto do que cem mil réis

Destravo uma fase da vida ao terminar um trabalho e nesses dias o novo me seduz. É sempre a sensação contraditória: o que nos empurra para o novo é o que o destrói. E então o primeiro beijo já não mais é, o momento único se perde para que se possa continuar. 
Nunca mais vou saber como é ouvir o Neil Young pela primeira vez. Beijar sua boca pela primeira vez. Ler o Hegel pela primeira vez. 
Mas eu sei que não quero viver sempre o mesmo. Minha saudade é dessa sensação original, primeira, incomparável. Me confunde não saber quando o novo acontecerá: o momento que precede uma descoberta marcante é sempre dissimulado. Acho que ele está nos perseguindo por aí a passos mansos. 
Aceito o que têm a me oferecer, façamos as trocas de mãos limpas e espírito aberto. Carinho, interesse, descobertas, apoio, cumplicidade, sexo, admiração. O mundo é vasto e as pessoas são infinitas.

domingo, junho 26, 2016

Cru

Varo a madrugada. Tem coisas que são mistério eterno mas a coragem é se aproximar, desdobrar página por página apesar da sensação de estar sempre cru mediante o conhecimento. É quase volátil, não assenta; é preciso domá-lo, acostumá-lo à minha língua, traduzi-lo em minha escrita. E me consome, me angustia, me excita, eu digo não vai dar e em seguida tenho um insight; eu acho que acabei mas o tempo se desmancha e me perturba. 
Nessas prioridades sinto meu corpo expandir. Cada vez que, pousada no chão, medito e inspiro, é como se o corpo cedesse menos ao comando de relaxamento pois que descubro mais corpo. De repente minhas sensações ultrapassam os limites e estou sentindo o pulsar, o estralar, o mexer de partes desconhecidas. Cresci nos últimos dias. Minhas funções estão selvagens, cheiro, fome, sono, tesão, palpitações, pressa m a s  o l h a r  l e t á r g i c o que passa pelo outro e encontra ali por trás a pergunta que me persegue desde que saí de casa:
que é a liberdade?
O tempo é outro. Acho que cabe nada aqui além disso. Desculpe o transtorno.

terça-feira, junho 07, 2016

Respondo sempre igual, tudo legal

Saudade é solúvel nos dias, nos compromissos, na vida, nas novas empolgações. Mas saudade não se dissolve na persistência da mágoa, na lembrança, na expectativa do mesmo, do retorno. 
Meu segredo é que sou rapaz esforçado 
e espero, mantendo a mente e o coração abertos, que eu possa viver de novo e sempre de novo as coisas que foram boas sem repetir os erros, aproximando cada vez mais do exato.
E o resto jogo num verso

domingo, maio 29, 2016

Exercício de olhar e tato

Fiquei olhando esse cara; discutíamos bondade e sabedoria, qual viera primeiro ou era mais forte em determinadas situações. Dar exemplos é sempre difícil. De súbito me ocorreu como as pessoas são diferentes. 

Um exercício, quase um estudo: mãos. A mulher à minha frente na rua andava com as mãos quase tensas, os dedos não se separavam. Já esse cara tem o hábito de levar as mãos aos cabelos, puxando os fios crespos como molas. Gosto desse gesto. 
As mãos tamborilando na mesa, marcando as sílabas sobretudo com o indicador e o médio, enquanto tenta guardar os numerais em alemão. Uma espécie de piano invisível.
As mãos pequenas e suaves passeando pela barba depois de comer, como para retirar qualquer vestígio, farelo de comida.
As mãos retas, crispadas como um playmobil, acompanhando com ênfase as frases mais importantes do discurso.
Os gestos: simular com as mãos o que não se deve traduzir. Descrever uma trajetória no ar para indicar AVIÃO. Um gesto mais brusco de dedos que se abrem para demonstrar o p como consoante mais explosiva em relação ao b.
Vez ou outra experimento a sensação de relaxamento ao meditar. Sigo comandos inaudíveis: relaxe os dedos dos pés, a palma dos pés, o peito dos pés, o calcanhar, solte os joelhos, a parte detrás dos joelhos, relaxe os músculos da coxa, a pélvis. Nesse ponto encontro as mãos: as palmas estão viradas pra cima, leve e confortavelmente afastadas do corpo. Relaxe os dedos, relaxe o pulso, e de repente não tenho mais mãos. sou um ser levitando. Tenho a consciência de que algo me limita em relação ao meu ambiente, mas não existe mais "mãos", o peso parece uma mentira.
Desperto aos poucos, quando o corpo exige, com um misto de sono, torpor, bem estar. Espreguiço feito gato, imponho força às mãos, ao gesto de abrir e fechar as mãos, expandir, separar os dedos. Volto a possuir limites visíveis, palpáveis, carne, peso. Exercício de existência.

sexta-feira, maio 27, 2016

A amiga genial

Escrever é fazer surgir.
Ler é existir em silêncio

Comecei a ler A amiga genial meio à toa. Andava - ainda ando, a bem dizer - dispersa, distraída, ansiosa e um pouco triste. É a hora de buscar refúgio numa existência silenciosa, pensei, e fui olhando todos os muitos livros até que algum me fisgasse. A amiga genial vez ou outra aparecia a mim mas eu desviava, até que topamos de vez e comecei a ler esperando mais inspiração que uma boa história. Mas encontrei os dois e no final não pude evitar o sonoro "caralho". É um livro muito bom. O melhor de minha vida? Com certeza não. Mas tem ritmo. Narra a infância como tempo de duras realidades, ainda incompreendidas, às quais se misturam as fantasias de um mundo melhor. Me lembrou alguma coisa de romances de formação, o crescimento das crianças, as famílias que se conhecem desde antes, os apelidos carinhosos. Me lembrou uma espécie de Boyhood com conflitos palpáveis, com aventura, reviravoltas, violência, pobreza. Mas ali estão também todas as coisas: a enunciação do "antes", a experiência de desmarginação, a descoberta da política, os conflitos teológicos, estas coisas do núcleo duro da vida. É um livro deveras rico.

terça-feira, maio 17, 2016

O desejo é importante, porra

Estamos sempre a meio caminho de alguma coisa. 
Nas últimas semanas com problemas no trabalho, na paixão, no aluguel, eu aceitaria de bom grado o telefone da jamanta do Caio Fernando Abreu e de seu amigo super dark. Ontem no caminho pro trabalho a chuva me encharcou os ossos, os cabelos, lavou as lágrimas por dentro; hoje alcancei enfim uma pacificação no fato de que as coisas são como existem: ao menos da forma que me é dada, o "se" não passa de potência e os atos já foram postos. Não é possível converter uma ação em não-acontecida e a má-consciência do ato não se reconcilia no castigo, pois o castigo é a manutenção negativa da ação, a pena é a lembrança da lei infringida. Só o destino é a luta de igual para igual, seja com valentia, seja com passividade, na qual é possível verdadeira reconciliação. Relegando o "se" à possibilidade que agora é ultrapassada, posso aceitar minhas insuficiências e entender meus limites, sem tribunal externo. E eu institui para mim hoje que o desejo é importante, porra. Amanhã vou pensar diferente, as pessoas pensam diferente, mas hoje acho que o desejo é uma forma de consciência, é uma vibração, uma linguagem, uma manifestação de presença e de vontade de estar ali, fazendo o que quer que seja. Sentir desejo é importante: o mundo se nos dá a conhecer em cheiros, gostos, texturas. O café, o chocolate, a cerveja, o corpo, o conto, a canção, a caminhada. É importante sim sentir desejo.

terça-feira, maio 03, 2016

Aprendizado de(o) ser livre

Penso que as relações devam ser particularizadas urgentemente. Se o seu interesse reside na disponibilidade, na escuta, na confirmação, no apoio que ofereço, mas não no que sou, já não me serve. Não sou "querida", não sou "flor do dia", não sou "linda", sou eu mesma e quero que as relações que construo sejam particulares. Nada impede que sejam múltiplas ou que se insiram na multiplicidade da vida de outras pessoas, mas o meu nome, o modo de tratamento, as conversas, as histórias que conto, as músicas que apresento, tudo isso deve ser particular. Do contrário cairemos num todo dissolvido em que tanto faz estar comigo ou com outra pessoa. E pra que nos relacionamos com outras pessoas, senão para experienciar o diferente, o algo mais? É um contrassenso tratá-las como iguais. Sei o quanto isso é difícil e o quanto eu mesma não consegui ainda equilibrar; por isso penso que estamos sempre a meio caminho, sempre indo, o destino é a caminhada. Por isso as pessoas passam e não ficam. Mas eu fico, por isso me preservo. 
As vezes já não sei mais identificar o que é de má-fé nas pessoas e o que são coincidências infelizes, o limite disso foi tão borrado que reajo às desculpas de modo instintivo, quase animal, mas me silencio para evitar o desgaste. Este é o ponto em que paro e penso, e por isso eu silencio. E nunca, nunca me fez tão bem esta apta a pensar; e nunca, nunca me foi tão cara a lucidez. 

quinta-feira, abril 28, 2016

O retorno do livro

Cheguei em casa e o livro estava na portaria numa sacola plástica de supermercado, um pouco amassado, com páginas aparentemente aleatórias marcadas. Confesso que não guardei quais páginas eram nem li com muita atenção os poemas. Me pareceu um término, me pareceu uma tentativa de afastamento silencioso, contrariando o que você me dissera sobre estar tudo bem - e melhor que seja isso do que uma provocação, um pretexto, uma forma de querer mostrar que não se importa. Eu respeito a decisão e penso hoje em dia que faria o mesmo, porque vejo do outro lado; respeito a autopreservação, mas não aceito jogos. E nisso me fundamento: sempre disse a verdade, mesmo quando não parecia adequada. 

de repente a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa morna e ingênua, que vai ficando no caminho.

Como é que pode isso - de repente olhar para o lado e ver alguém que não reconhece mais? 

sexta-feira, abril 15, 2016

Por favor

Da primeira vez que li o livro de Amanda Palmer, achei sentimental, simplório. Mas A arte de pedir me tocou no mesmo ponto que mobiliza as outras pessoas: o ato. Estou há algum tempo - a meu modo e contra minha vontade e orgulho - pedindo.
Peço tempo (um prazo maior, uma mudança de horário, reagendamento de compromissos), dinheiro emprestado, compreensão, paciência, desculpas, ajuda. Estou pedindo que prestem atenção ao que eu digo, às explicações que dou. Peço veladamente que atentem aos sinais quando falo da ansiedade. Peço explicitamente, mas morrendo de vergonha, que me paguem no dia combinado. Peço sinceridade, carinho. E é sempre muito, muito difícil, pois o pedido envolve a possibilidade da negação - e como Palmer diz, essa vulnerabilidade da recusa é o que nos constrange no pedido.

quinta-feira, abril 07, 2016

Denso, extenso, indecifrável

Dois dias para cair o cheque, vinte minutos para cozinhar o arroz, quatro minutos para o próximo trem. Meia hora a mais já é uma ajudinha, cinco minutos de soneca decidem o dia e o atraso. Três semanas sem se ver, um fim de semana na praia, um áudio de 3 minutos se desculpando, semana de trabalho de infinitas horas descansando como no Princípio, só no sétimo dia, que parece então reduzido a poucas horas em vez de 24. Duas transas até encaixar, sempre dez minutos até gozar. 40 reais a hora-aula, 1165 o aluguel. É preciso subir a hora-aula. A partir de 46 aulas rola um bônus. 106 páginas até aqui, falta a conclusão, falta expandir o desenvolvimento, falta lapidar a introdução, falta rever a bibliografia. Sala 21, despertador às 5h. 
Se a estatística alcança a previsão, não logra descrever as possibilidades: sabemos que são muitas, quiçá sejam os arranjos infinitos, mas não saberemos jamais como ou devidamente quais são. O que é o tempo? A vida vira um desfile de números, cujo significado não é além de imposto, arbitrário, atribuído. Os Jogos Olímpicos de 1896 quase foram arruinados por uma diferença de calendários, li ontem enquanto tomava o terceiro café do dia. . 

segunda-feira, março 28, 2016

Reconhecer-se

Não [me] vê, não enxerga. É claro que não, está autocentrado, não perceberia a menos que tivesse seu nome, pois é só o que lhe diz respeito. 
Não me vê como pessoa, mas como instrumento; espera alcançar respostas, explicações, conhecimento, coisas que não darei porque não tenho. Se as tivesse, não seria eu. 
Não vê meu corpo, só quer ver-se refletido na foto, sua beleza, seu corpo, sua inteligência. 
Não me lê, me ouve o quanto interessa. Quer aplausos, reconhecimento; reconhecer seu esforço surgindo nos músculos, nas palavras. Espera brevemente meu aval para seguir adiante, e sigo sendo a que faz a passagem. Não me proponho a fazer a elevação intelectual de ninguém; sequer poderia, nem mesmo se eu quisesse. Olhe ao menos um pouco pra mim: veja a confusão, a ausência de profundidade, a tentativa ainda não-plena. Sou ainda um projeto de algo que não sei, de algo que não (se) sabe. Estou a caminho, e chegando lá já não serei eu, portanto já não serei eu contigo, nem sei se estarei contigo, se é que estou agora. Me perguntaram dia desses:
O que significo pra você?
A pergunta me calou um pouco. Não tive resposta pronta, imediata. Mas disse uma verdade: o Outro me significa algo que pode também não ser. Fosse eu solenemente ignorada nas minhas futuras investidas por um de meus parceiros, certamente sofreria, quiçá choraria um pouco, mas a vida seguiria como sempre seguiu. Acho que o Outro ainda não pertence à minha essência senão enquanto nome e entidade, por isso posso ser sem ele. Como fui por tanto tempo, e potencialmente o serei. Ou o Outro é e deve ser por isso mesmo Muitos. Ser livre ainda me soa o estar-consigo-mesmo-no-outro, mas o Outro ainda é abstrato.  

sábado, março 26, 2016

Cem anos de solidão

Seria a história fantástica de Macondo a própria história do mundo? Me alertam que seria uma história muito mais particular, a da América Latina. A história de como os homens descobrem a guerra, a morte, a política e as leis, a arte, a magia e a ciência; de como ocupam a terra, nomeiam as coisas; de como todos vêm da mesma família, gerada em outra família e em outro lugar, mas reinstalada para fugir de uma existência fundando outra existência a princípio autônoma mas frequentemente oscilante entre degenerada e criativa, subsistente e carente do exterior para se refundar. Uma história contada a princípio sem propósito, fluida, narrando eventos absurdos. O quanto de nossa história não soa absurda aos outros? 
Não estou nem na metade mas já me cerca uma beleza inesperada. 

segunda-feira, março 21, 2016

Depois de um ano

"O amor é sexualmente transmissível.

Não adianta explicar. Você não vai entender.
Às vezes, como num sonho, vejo o dia da minha morte. É uma coisa meio espírita, um flash. E, embora a mulher não apareça, sei que é por causa dela que estão me matando. E tenho tempo de saber que não me deixa infeliz o desfecho da nossa história. Terá valido a pena"

domingo, março 20, 2016

Coletânea

Meu bem, hoje você faz 25. Te agradaria uma surpresa, eu ando sem tempo nem paciência pras surpresas agendadas, mas essa deu gosto: separei trechos, recortes de livros - relevantes, meus preferidos, desconhecidos, tocantes, simbólicos. Juntei tudo num caderninho novo pra você não se esquecer de escrever também. Leia e escreva, anote as belezas do seu dia, seus medos, suas impressões, suas mudanças. Tenho feito isso com meus sentimentos: com a sensação de urgência política, com a confusão dos dias, com o ciúme que há tempos eu não via. Parei, escrevi, entendi que o ciúme não tem a ver com ninguém, não tem a ver com aquele cara que estou conhecendo e que é mais experiente, nem contigo e com nosso tipo de relação, nem com nenhuma das pessoas que passam pela minha vida e passarão. Tem a ver comigo e com minha insegurança emocional, com a minha necessidade de reestabelecer uma relação boa comigo mesma, de redobrar a confiança no meu trabalho, na minha escrita, no futuro que planejo, de administrar melhor meu tempo. Isto passa também pela necessidade de reestabelecer uma boa relação com o corpo, afinal, é através dele que faço: trabalho, cozinho, escrevo, me alongo, me coloco em "repouso" ao dormir, tenho prazer, tomo minhas cervejas, cuido das plantas. Descubro o mundo. Crio minha vida. Meu presente é um estímulo para que você não se esqueça de produzir - intelectualmente.  

Ação, fazer

Estive no ato ontem. É importante o posicionamento público, embora eu prefira prescindir da perniciosa figura do herói falando às multidões. Penso bastante no depois: o que tem sido feito além da ação performática? Li num artigo* dia desses sobre o quanto a esquerda adotou a ação performática - o ato, o protesto - como seu campo e retrocedeu nas ações cotidianas, na militância do dia a dia, na construção, no desenvolvimento. O funcionamento não deve ser só no espetáculo, é preciso reinventar a atuação em tempo, espaço e ação, estas unidades canônicas. Vamos às ruas, cabelo ao vento, gente jovem reunida, encontramos os nossos, os ânimos são reaquecidos, o medo de um golpe - que soava tão conspiratório - dá uma trégua. Mas particularmente falando voltei para casa sem a certeza de que fiz algo cuja duração seja maior que uma noite, que uma performance. 
O ganho, me parece, é a discussão. Política não deve ser algo acontecendo "lá", "lá fora", "lá em cima", pois é a parte da vida, é construção coletiva.

* http://lavrapalavra.com/2016/03/02/acao-performatica-a-politica-revolucionaria-entre-a-depressao-e-o-extase/


segunda-feira, março 14, 2016

Be soft. Do not let the world make you hard. Do not let the pain make you hate. Do not let the bitterness steal your sweetness. Take pride that even though the rest of the world may disagree, you still believe it to be a beautiful place.

sábado, março 12, 2016

A entrevista de Neil Gaiman; para um bom domingo

Da entrevista de Neil Gaiman para o Buzzfeed, traduzida e adaptada pelo Homo Literatus:
"...quando eu era criança, encontrar quem gostasse do que eu gostava e pensava como eu pensava e lia o que eu lia e poderiam ter me recomendado algo que eu pudesse ter amado era como entrar em um tubo mágico de sonhos [...] Por outro lado, também significa que essas pessoas estão apenas falando e ouvindo umas as outras [...] Para mim, o que é sempre importante para escritores é a alegria de encontrar outros pontos de vista e ver coisas por outros olhos. Para ter não apenas o direito, mas o poder de olhar algo e dizer 'isso que você está fazendo e dizendo é maravilhoso', ou 'isso que você está fazendo e dizendo está errado', ou 'isso que você está fazendo e dizendo é algo de seu tempo e você provavelmente não pensaria ou diria isso hoje'. O melhor dessa experiência é a sensação de “você não sou eu, e estou vendo e minha visão de mundo está mudando”. Em que mundo triste viveríamos, se as únicas pessoas cujas ficções eu pudesse ler, cujas poesias eu pudesse experimentar, cujas músicas eu pudesse cantar, fossem pessoas que pensassem e imaginassem exatamente como eu. Quero diversidade de pontos de vista em todas as formas, e isso incluí o interior de outras cabeças. É maravilhoso. Outras culturas, outros lugares. Temos que ir lá. Temos que experimentar isso".

Notar: a importância da diferença. A pertinência obstinada no mesmo, na repetição, como forma de reforço daquilo que se pensa e diz, acaba por ocultar o outro e sua voz e nos priva de um rico mundo esperando por ser encontrado.

Em outra editoria, mais leve, topo ainda com essa beleza do Alcides Vilaça para imaginar não só um bom domingo - eis como imagino a vida.:
"Venha em casa domingo. Algum macarrão sempre tem. Vinho também. Depois da sesta podemos dar uma espiada nuns poetas: procurando, acha-se alguma coisa que ajuda a viver, sobretudo entre aqueles que dizem não valer a pena. Ao anoitecer, faço um café bem forte pra tomar perto da janela e ficar contando umas histórias pra te distrair. Depois que nos despedirmos acompanho você com os olhos até virar a esquina. Entro e vou ouvir alguma coisa bonita, que soe bonito num domingo terminando. A vida pede que vivamos com calma seu jeito de ser mais simples".

terça-feira, março 08, 2016

Mulher

A romantização da mulher forte, guerreira e determinada serve muito bem à sociedade que nega direitos, quase a ponto de justificar que a gente tenha mesmo que se desdobrar na vida porque naturalmente seríamos assim, feitas para suportar a dor e o peso do mundo. Tenho um orgulho absurdo das mulheres da minha vida: avós, mãe, irmãs, amigas, parceiras ou figuras longínquas que admiro, mas eu preferiria sentir orgulho só das conquistas e das histórias positivas e não porque sobreviveram a tentativas de assassinatos, abusos, assédios de toda sorte, ou porque criaram filhos sozinhas ou em guardas compartilhadas ilusórias, ou porque faziam três turnos pra dar conta das coisas, ou porque ilustram as estatísticas de uma denúncia a cada 7 minutos, ou porque abandonaram seus sonhos para ser o alicerce de alguém. Quero que sejam lembradas pelas escolhas e porque tiveram escolhas, porque foram o que quiseram e não o que tiveram de ser. Um ano inteiro de descaso para um viva às "super-mulheres" - e passada a data e as flores, há o retorno ao esquecimento, ao apagamento, à exclusão do mercado de trabalho ou aos subempregos, ao isolamento no exercício da maternidade, aos relacionamentos que minam a autoestima. Que a luta e a força sejam características nossas quando - e se - a gente quiser.

segunda-feira, março 07, 2016

Conversa íntima

Não me lembro se fiz planos para 2016. O fim de ano chegou e passou rápido e sem anúncio; em uma semana já estava tudo de volta mas não estava, e desde então ficou muita coisa em suspenso. Terminar um projeto. Começar o próximo. Organizar o tempo. Arrumar um trampo mais estável. Estar mais atento e consciente. Conciliar as demandas afetivas minhas e dos outros, abrir espaço, dar apoio e estimular que as pessoas queridas se encontrem - eu sei, eu sei, mesmo que isso signifique longe de mim. O aprendizado de ser livre inclui permitir que certas coisas se ajeitem em seu tempo, mas ocorre que sou muito impressionável, sensível demais ainda a algumas coisas; noto variações, elas me preocupam, não sei como articular os incômodos, logo tudo vira um nó por dentro e paraliso. O justo equilíbrio entre o que preciso e o que esperam me pesa, ainda que seja evidente: não há muito o que fazer, não dá pra ser mais do que a gente é. 

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

Dos modos de carinho

"Cozinhar não é um serviço. Cozinhar é um modo de amar os outros".
Não li Mia Couto, mas a citação me fez muito sentido. E quanto mais penso, mais faz sentido o peso do ato. Cozinhar para pessoas queridas é a extensão do carinho. Existe o cozinhar burocrático, mas existe o cozinhar atento, que considera o tempero para cada paladar, que ao longo do preparo tenta imaginar a expressão do outro ao provar um prato, por menor que seja, por mais simples que seja. 

Leituras

Como ler as pessoas:
potencialmente através do que falam dos seus. Carinho e respeito para com aqueles que são e foram importantes indicam uma mente acolhedora e que lida de maneira boa com os relacionamentos - atuais, passados e futuros. Gabar-se de provocar ódio em um ex-companheiro pode indicar uma visão no fundo extremamente romanceada de relacionamentos, como se devessem percorrer um arco narrativo de fortes emoções. Isto me disseram uma vez e dei razão; hoje em dia prezo muito pela minha paz em silêncio, pela convivência mas pelo espaço, pelo acréscimo vindo de boa-vontade e não pela exigência; pelo quentinho no coração e pelos olhos fechados no abraço; não pela ausência de sono, nem de fome, nem pela construção de brigas pelo mero prazer da reconciliação, menos ainda pelos jogos de quem-deve-falar-o-que-e-quando. 

sábado, fevereiro 06, 2016

Distraídos venceremos?

Desvendando os sentimentos ao conversar com alguém: "você só passa coisas boas" é o tipo de comentário positivo a se ouvir. As primeiras impressões eu quero documentar: calmaria, olhar tranquilo de quem não enxerga muito bem, o diálogo sem pressa de tirar conclusões. Temos bastante a descobrir sobre a pessoa do outro lado. É curioso notar a diferença de perspectiva de tempo: um plano para depois dos 40 ainda me é tão distante que quase soa como uma brincadeira, mas depois notei seus cabelos grisalhos enquanto andávamos pelas ruas. E, honestamente, são tão charmosos quanto a conversa franca e os desenhos pelo corpo. 
O problema é que: ajeita aqui, fica campenga acolá. Será possível ter satisfação e bons resultados no trabalho E grana E boas relações intersubjetivas? Tempo e dinheiro, saúde e prazer, cuidado e desprendimento?

Anos dourados

As fotos aleatórias contam uma história: no início eram felizes. Um terceiro documentava os passeios, num claro indício de uma família receptiva e com "amigos do casal". Numa das fotos, diversas felicitações pelo novo filho. Comemorações de aniversário, casamento, passeio no parque. Nas mais recentes poucos comentários, e vez ou outra uma tentativa de descrição retroativa: uma das partes afirma que ali acontecera tal coisa, observações que me soam uma busca pelo perdido, por resgatar o ambiente daquela época. "Éramos assim, fazíamos isso". Já agora surgem fotos da família fragmentada: os filhos nao aparecem mais juntos, menos ainda os pais.
Tenho uma sensação estranha nesta narrativa, porque me reconheço um pouco envolvida. Cheguei depois, mas ainda posso imaginar o efeito do verso: "me vejo ao teu lado; te amo? nao lembro". É possível esquecer o sentimento? Negá-lo, sim; superá-lo, talvez; mas esquecer algo grande, a construção de uma história, de uma família, de uma vida juntos - ainda que de mentira - nao me parece cabível.  

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

Por quem os sinos dobram

As primeiras impressões sobre Hemingway são empolgantes. Por quem os sinos dobram tem sido um livro diferente e daí o interesse em documentá-lo enquanto leio. A história parece viva e humana e a descrição detalhada faz imaginar texturas da camisa, do saco de dormir, dos cigarros, do cabelo curto de Maria; atiça o paladar com lembranças inexistentes imaginando o vinho e o cheiro da caverna: uma mistura de suor, comida, fumaça e tensão. O tempo é seco e as pessoas são duras - a princípio. Política, História, uma relação que nasce direta; cavalos, montanhas, dinamites. A descrição das paisagens, caminhos, estradas e da ponte me detém: qual o interesse dos detalhes senão nos permitir (re)criar a História? 

segunda-feira, janeiro 25, 2016

Dois anos

Dois anos realizando a vida que não planejei - não exatamente assim, não nos detalhes, mas no grosso: ser feliz e livre. Isto procuro cumprir todos os dias; já não faço tantos planos a longo prazo porque me falham as certezas. Alguns prazos permanecem, sim, deles damos conta, mas de resto, abro espaço ao espontâneo. A cidade é grande, as possibilidades são vastas; me encontrei morando aqui como nunca pensei que fosse possível. Isto ocorreria em outro lugar? Não sei.
Não sei porque eu seria outra morando em outra cidade. 
Me mudei para esse canto há dois anos, neste mesmo 25 de janeiro. Antes disso, anos dividindo casa e experiências até entender minha dinâmica: silêncio e tranquilidade me fazem bem, são minha situação ideal. Eu adoro São Paulo e me sinto no processo, no meu processo de construção da vida. 

quinta-feira, janeiro 21, 2016

Homem e religião

Volta e meia penso sobre religião para além da minha pesquisa. Pessoas próximas, de diversas crenças, expressam seus valores e não nego que faço minhas observações. Mas as faço para mim, com cuidado e sempre buscando a devida justiça. 
E o fato é que nas coisas que leio e que ouço sobre religião sinto uma urgência de personificação, na falta de uma palavra melhor. Diferentes deuses, de diferentes religiões, mas em comum o fato de que o deus é porque é para você. Os deuses são na medida em que são para cada um. Nas suas narrativas há alguma coisa agindo na vida de cada um, seja para dar sentido, para impor uma finalidade como a evolução, o tornar-se-melhor, seja para punir e determinar o que deve ser feito e o que não deve ser feito. O deus fala a cada um - no sermão, no evangelho, no íntimo, através de mediadores. O deus tem planos, aconselha a cada um, conforta. Isto é deveras sedutor: alguém que está lá por você, que - para alguns - deu a vida do filho por você. Na religião, a despeito de toda autoridade divina, o homem se crê o centro do mundo e do olhar de deus. Eis um ponto que me parece tão estranho, pois não somos um nada num universo cuja extensão sequer é conhecida? Mas a religião atribui importância e finalidade a cada um dos homens. 

segunda-feira, janeiro 11, 2016

Lazarus

Bowie nos deixa, mas deixa para nós uma história ímpar, deixa uma rica influência que ressoará pela história da música e da cultura. Acho que a arte não morre, é infinita em seus efeitos, mas o corpo perece e - pesar dos pesares - se finda a extensão no futuro. Ou seja: Blackstar será o último rastro de criação efetiva de Bowie e aqui se acabou para mim a oportunidade de vê-lo ao vivo.
A primeira audição de Bowie após sua morte não me soou estranha, mas com o tempo um buraco se abriu no peito, cavado ainda pelos últimos acontecimentos - despedidas e saudades são a tônica destes dias. 
Bowie é infinito em nós, mas dessa vez Lázaro não retornará à vida. 

sexta-feira, janeiro 01, 2016

2016

Caí num texto no Medium. A autora é Isadora Sinay, e cita Gaiman:

"May your coming year be filled with magic and dreams and good madness. I hope you read some fine books and kiss someone who thinks you’re wonderful, and don’t forget to make some art – write or draw or build or sing or live as only you can. And I hope, somewhere in the next year, you surprise yourself".