terça-feira, setembro 04, 2018

Unidade originária

O poema é de Angélica Freitas e se chama "eu durmo comigo"

eu durmo comigo/ deitada de bruços eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo às vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir ao lado

domingo, agosto 19, 2018

Régua ideológica

“A desqualificação do voto dos pobres e de tudo o que lhes diz respeito é sintoma de uma incapacidade crônica de empatia de uma parte de nossas elites, que também vota segundo seus interesses, mas que aprendeu a traduzi-los em princípios abstratos muito bonitos, como liberdade, empreendedorismo, empregabilidade.”
A afirmação é da socióloga Maria Eduarda da Mota Rocha e compõe o texto de Fabiana Moraes na Piauí, intitulado "Razão não depende de geografia. No imaginário nacional, o Nordeste segue como a terra que vota com o estômago". No centro das eleições, a ideia de racionalidade: de um lado, uma parte da população que se vê como elite esclarecida - mas que sequer compreende aquilo que é visto como pretenso oposto, a pobreza; de outro, a parcela da população afirmada irracional; ambas exercendo o direito de voto em concordância com seus valores e expectativas, mas apenas um dos lados tem sua escolha legitimada e vista como desinteressada. 

sábado, agosto 18, 2018

Torquato em ternura e tormento

Como seu pai, Torquato era um homem lindo e parecia muito doce, apesar de algumas poucas fotos já denunciarem um estado perturbado. Ando às voltas com suas palavras:

Cogito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível


eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora


eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim


eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim

terça-feira, agosto 07, 2018

Como surge o Eu

Quando eu lia sobre a doutrina dos antigos - mesmo com os não-tão-antigos, como no Empédocles de Hölderlin - sempre me assombrava a narrativa de unificação plena entre homens e natureza, uma natureza sem mistério em comunhão com deuses que andavam entre os homens. Mas nunca havia me ocorrido que esta unificação se dava entre os próprios homens, um universal indiferenciado no qual não distinguiam dos outros algo de si, de próprio. Eram todos Um.
"[...] os outros eram extensões ou modificações de si mesmo. Quando alguém não gostava do que via, atacava a si próprio, achando que, com isso, conseguiria extirpar o que lhe desagradava. Da mesma maneira, quando um homem encontrava uma mulher que lhe aprazia, buscava encontrar em seu próprio corpo, coçando-se, mexendo-se, a fonte daquele prazer. Também acontecia com muita frequência, é claro, de os indivíduos tocarem-se uns aos outros, atacarem-se ou conhecerem-se, mas sempre com a sensação de que aqueles encontros não eram nada mais que o corpo de cada um agregado à natureza. Assim, também não havia distinção entre os seres e as manifestações naturais ou cósmicas, como as árvores, o sol e o trovão..." (JAFFE, N. A verdadeira história do alfabeto).
Só quando o primeiro homem pôde perceber-se como unidade a marca subjetiva veio à luz - e para sinalizar a descoberta, cunhou uma letra, o E, da qual derivou-se o nome para o que descobrira: o Eu. 

segunda-feira, julho 02, 2018

Sobre a construção animal

A teia de uma aranha é, também, ela mesma - um processo que resulta numa fibra sintética que sai de si mesma, de seu ventre, e que se estende pelo ambiente. Vejo como se a aranha construísse algo que é uma continuidade de si, por meio do qual ela não só captura alimento (uma casa-caça), mas sente e pensa o ambiente. Esta é a hipótese com a qual filósofos e cientistas trabalham através do conceito de cognição estendida. Os experimentos provam que tipos diferentes de aranhas nem sempre seguem um procedimento automático na captura das presas, pois são capazes de improvisar novas técnicas de captura quando se interfere na estrutura da teia - inclusive nos raros casos de aranhas que vivem em colônias, numa espécie de cognição coletiva.
Para além da controvérsia da tese, de seus experimentos e críticas, é possível arriscar considerações: diferente de um joão-de-barro, o que é a aranha constrói é ela mesma, sai de seu próprio corpo e de seu próprio material. Fascina pensar na hipótese de uma construção que tenha tanto de você quanto você mesmo. 

Cf. ESTEVES, B. Teço, logo existo, in Revista Piauí, Edição 141, Junho 2018. 

sexta-feira, junho 08, 2018

Linguagem

-Camilo, não existem fantasmas.
-Pai, por que existem palavras para coisas que não existem?

Por Adão Iturrusgarai 

quinta-feira, maio 10, 2018

Foice-ferramenta

É preciso ver as coisas, olhá-las nos olhos sem o prejuízo do medo, pois a verdade - ou o que a isso corresponde provisoriamente - vem sob a forma da compreensão desenvolvida desde a situação. Parcial, unilateral, mas ela é, tem existência. No caso: a compreensão muito clara e lúcida de que às vezes o que o outro lado busca é tão somente a pausa, o almoço como respiro na rotina, na semana, no casamento, no trabalho, na vida doméstica, cotidiana, familiar, para se inflar de pretensa novidade; o que se busca é isso e não a pessoa do lado de cá. Tais obviedades cruéis demoram para se formar no nosso pensamento, mas uma vez desveladas, são o caminho doloroso - que permite pular fora. 

quarta-feira, maio 02, 2018

Prédio abaixo

O diagnóstico de Caetano continua presente e triste: everybody knows that our cities were built to be destroyed. Prédio abaixo, vidas fora, fogo sem controle; como é possível que isso - não só o fato, mas a circunstância toda que o propicia - aconteça? 

sábado, abril 28, 2018

Natureza e afeto desdobrados

Há coisas que brotam de dentro e crescem em silêncio, desavisadas, desavisados todos nós. O corpo está em movimento até em suas menores partes e a matéria segue seu curso à revelia de nosso consentimento - se desdobra, se multiplica, se recompõe. De repente soa um alarme e a descoberta se define: as imagens da doença, fotografias em contraste e negativo que me lembraram o retrato íntimo de Hans Castorp na Montanha Mágica - há um fascínio em ver as coisas por dentro. 
Pari passu crescem por dentro outras coisas, pois a vida, enquanto há, é inflexível. Outro início também foi atribuído a uma fotografia, inofensiva, um par de olhos que ainda não pude adjetivar ao certo. Mas estes desdobramentos são suaves, agregam calma, paz; são sentimentos de carinho, de ternura, de um querer-bem preguiçoso e pacífico como um gato deitado ao sol. 

quinta-feira, abril 12, 2018

Lost in translation

- I'm stuck. Does it get easier?

- No. Yes. It gets easier.

- Oh yeah? Look at you.

- Thanks. The more you know who you are, and what you want, the less you let things upset you.

sexta-feira, março 09, 2018

Os olhos das mulheres

Uma avó era de um tecido bruto, cru, que resistia a tudo. Ontem seria seu aniversário; da outra, dali quase um mês. As que existiram antes de nós, que sofreram os golpes de faca e de palavra, pavimentaram o caminho onde tudo antes era mata sem clareira. Eu acho que ainda vamos ser interpeladas muitas vezes por aquela sensação cortante no breu da noite de que Conceição Evaristo falava: de que cor eram seus olhos - eu me pergunto, os de minhas avós? De que cor são os olhos da minha mãe e de minhas irmãs? Dois pares são míopes; três, castanhos; todos são olhos de invenção, de cuidado, de atenção, de saber e de ensinar, de arte e de carinho.

domingo, janeiro 21, 2018

Sob a patrulha de Alpha 60

As construções de Alphaville: prédios-caixote; luz e vidro nas janelas contra a escuridão da rua; escadas internas: helicoidais vazadas ou em U nas saídas de emergência; amplos átrios; longos corredores flanqueados de portas fechadas.

quarta-feira, janeiro 17, 2018

Todo mundo tem uma história

Linger deve ter sido uma das músicas mais tocadas em rádio por muito tempo desde seu lançamento em 1993. Consequentemente foi uma das canções que mais ouvimos de modo aleatório desde então, e a ela anexamos, quase todos, lembranças. As minhas são da morte da minha avó em 2001 e nem sei bem precisar o porquê dessa relação entre o evento e a música. Lembro vagamente de conversar com minha mãe sobre isso e, ainda que não se trate de um tabu falar dessa morte, não consigo reconstituir como a conversa avançou. De toda forma a relação com a música ficou com esse toque delicado, delicado não enquanto afetação, mas como é o ser de um delicado tecido: mal pousa sobre a pele, escorrega por entre os dedos como se tivesse vida própria.

sexta-feira, janeiro 12, 2018

O ser do que já não é

Retomar hábitos é reencontrar-se numa dimensão que já não é o agora e nem é ainda passado.

Não sei o que ficou ou por que me lembro e penso com tanta frequência, ultimamente, nesses eventos. É como se houvesse a iminência de um acontecimento - um acontecimento que eu jamais seria capaz de produzir. Por mais sintomático que seja pensar nisso e ainda escrever sobre isso agora, tanto tempo depois e no primeiro (e não-revisado) texto do ano, eu não acho que seja o caso de retomar contato. Sinto que a ideia de acerto de contas, de passar a limpo, é fabricada e artificial e apenas um pretexto para reviver aquilo que, sabemos, não é mais o mesmo. Deve ser que pensar sobre isso seja antes uma revisão sobre mim mesma, sobre coisas que não consegui soltar, laços que apesar de fracos não consegui desfazer do lado de cá pois atados numa região muito íntima e de difícil acesso do meu ser, ainda que eu veja a outra ponta voando e pairando livre.