segunda-feira, dezembro 28, 2020

Estou escavando uma vida

Abro os textos e vou em busca de vestígios, de entrelinhas, do dito bem como do apenas tencionado, do pensamento implícito. O caminho de um ser permanece pleno de rastros mesmo após a morte - rastros seja daquilo que ativamente se fez, seja daquilo que existia e que nesta medida influenciou, moldou potencialmente a existência e a obra. Uma vida não é um ser isolado; é antes organismo em sistema de troca com o exterior, em constante fazer-e-ser-feito. Então o caminho pra dentro, para o pensamento, pode ser também o caminho pra fora, para a efetividade. 

quarta-feira, dezembro 02, 2020

Dessemelhanças

Ainda que unido no laço de uma mesma desgraça, o mundo é vasto. As investidas pelas quais a tragédia acomete povos e indivíduos são distintas em formas e graus, mas há coisa de um ano o mundo todo tem um véu sombrio incessante, incontornável. Agora se preparam para retirar o véu, mas ainda é preciso esperar baixar a poeira densa que se depositou sobre ele, e então fazer a limpeza dos móveis sujos, e lidar com as reações físicas ao pó e à retomada da exposição ao sol, que ficara obscurecido desde então, e lidar com os efeitos psicológicos de todos mas, sobretudo, dos mais cobertos pelo véu e dos que cuidam destes. Com a mesma força com que a ciência avança, a vida permanece um domínio do tempo que não é possível dobrar, manifestando por si suas vontades.

Só que na dessemelhança do mundo está contida também uma dose de beleza e ternura. Nos tempos cascudos e frios eu encontro todo dia já pela manhã uma surpresa, um carinho, que materializa a vontade de tornar o mundo um lugar mais agradável, e ao longo do dia surgem pequenos gestos e palavras que também sinalizam afeto e apoio, e de noite eu durmo com o amor. Eu não sei o que - ou se há mesmo algo que - controla esta sorte que eu tenho; mais do que agradecer, me faço consciente disso.

sexta-feira, novembro 06, 2020

Retrato de uma nova vida

As árvores já estão quase nuas e cobriram as calçadas com o tapete de folhas amareladas. Na cozinha agora é possível ver distintamente o prédio ao lado; quando começamos a passar o café juntos de manhã, há seis meses, mal se podia divisar o que havia por detrás destas árvores. Nestes seis meses as folhas vicejaram e caíram, os dias se tornaram frios, escurece cada vez mais cedo, nas ruas circulam casacos fugidios e máscaras, 

mas em casa é refúgio. 

As seis semanas que se tornaram seis meses me emocionam, e todo dia de manhã, quando você me dá um beijo e eu toco de leve seu rosto, e todo dia ao tomar nosso café-preto acompanhado da banana-com-aveia, e todo dia ao ver sua figura, seu perfil, seu corpo e sentir uma certeza íntima que nunca acreditei existir de que vamos viver muitos planos, todo dia eu sinto uma ternura tão grande, tão aconchegante, tão pacificadora: o amor é doce, quietinho e quentinho.