quarta-feira, agosto 31, 2016

GOLPE


GOLPE

segunda-feira, agosto 29, 2016

Patti Smith holding a feather in Paris, 1969.

A foto de Patti Smith que mais tem efeito sobre mim não é de autoria de Mapplethorpe - talvez justamente porque nos retratos de Patti por Mapplethorpe se veja mais o próprio Mapplethorpe que Patti, comentário que ela atribui, em sua biografia, ao ex-marido Fred Sonic Smith. Já na foto de Linda Smith Bianucci (sou levada a crer que se trata da irmã de Patti, Linda Smith, que a acompanhara na primeira viagem por Paris, em 1969) Patti segura uma pena na mão direita, polegar e indicador formando um elo, enquanto mantém a mão esquerda aberta em concha, numa espécie de pedido, invocação mágica. A pena - branca e leve - contrasta com a gola alta preta de Patti Smith e com a seriedade dos seus traços, a boca rasgada, o olhar firme, o nariz altivo. Não há como evitar as interpretações, Patti sempre fora adepta de simbolismos, compartilhando tal predileção com Mapplethorpe. A convivência dos dois era marcada pelos objetos: trocavam presentes exclusivos, feitos pelas próprias mãos, sobretudo em datas especiais e épocas difíceis. Modelavam e transformavam o lixo, o descarte, neles mesmos, no reflexo da relação pura e única. "Ninguém vê o mundo como nós, Patti", diria Mapplethorpe.  
Por isso Só garotos me foi um livro triste e bonito. É o retrato de uma relação intimista e douradoura, daquelas em que, admito, pouco acredito. Enquanto lia tinha por vezes a sensação de que Patti se doara muito mais à relação que Mapplethorpe, mas certos detalhes e vivências pertencem a um delicado campo, difícil de descrever. Mapplethorpe era egocêntrico e intransigente, enquanto a força de Patti residia numa resistência outra. Um dos momentos significativos do livro é quando ela fala de Warhol, que Mapplethorpe tinha na mais alta conta porque refletia o mundo - mas Patti não queria refletir o mundo e sim mudá-lo.   
Por essas declarações Só garotos é mais do que o retrato da relação intimista de Patti e Mapplethorpe e sim o retrato artístico de uma geração, dos anos 60/70, pela menina que amava Rimbaud e queria ser poeta, mas despertou para a música com Jim Morrison: ao vê-lo, narra, percebeu que poderia fazer aquilo também. E assim se tornou uma artista de rock'n roll.

sexta-feira, agosto 19, 2016

Fluxo

Ulysses é fluxo, ritmo. É um tempo que se distende na leitura acrescido do tempo de sorrir com as inovações e neologismos - muitos, mais do que em qualquer livro visto antes. E as descrições, ah, como fogem do óbvio; formam um quadro que se destaca da página e de repente uma cena parece pairar sobre o livro, uma paisagem habilmente construída na matéria da imaginação mas contendo cheiro, sons, gosto, presença. A narrativa capta de modo insano a constituição do pensamento, até mesmo os incompletos, os fragmentos, os debates internos. 

terça-feira, agosto 02, 2016

Entre deuses e homens

Uma nova mitologia não é exatamente um objeto recente de discussão. Na nascente do idealismo alemão já se discutia essa possibilidade - ou necessidade - ora pelo reavivamento da mitologia antiga, ora pelo aventamento da construção de uma nova mitologia suficientemente capaz de se relacionar com os aspectos do mundo moderno. Mas o que seria para o mundo atual uma mitologia? Haveria, em verdade, espaço para mitologia e deuses? Quais seriam nossos deuses? E o que seria feito dos deuses antigos?
Deuses americanos
, de Neil Gaiman, carrega muitas dessas indagações que habitam o seio do mundo e do pensamento comum. A tese de Gaiman é a de que quando os povos migram, levam consigo seus deuses. Com um pouco de sorte, esses deuses conseguem se estabelecer na nova terra e prosperar, alimentando-se do culto e da adoração. Mas de um modo geral passaram a ser esquecidos no novo continente americano, e sem o alimento da memória, perecem e definham em seu poder.
O processo se agrava com o surgimento de novos deuses - Media, que fala aos homens de modo sedutor pela televisão; o deus da técnica, um adolescente revoltado e confuso - que se valem de novos golpes e formas de admoestação. No livro de Gaiman, o conflito entre as gerações mitológicas antiga e nova desemboca em uma guerra no solo americano transformado em ambiente de magia e do improvável, tão caro à literatura fantástica de Gaiman. E o diagnóstico pesa mais em favor do homem, que de criatura se converte em criador.