domingo, outubro 23, 2016

Paraíso, 19/10, 11h30

O velho na calçada abordava as pessoas, mas ninguém queria comprar nada - tampouco ele queria vender, só distribuía medalhas de Nossa Senhora. Deve se tratar de alguma promessa, pensei, e lembrei das salas de santuário que visitei quando criança e nos inúmeros testemunhos de pagamento de promessas: próteses, recortes de jornal, cartas, mórbidos materiais de agradecimento. E o cheiro de vela.  
Mas no momento do velho das medalhas em vez de cheiro de vela, havia o cheiro de milho cozido, que invadia a estação de metrô. Um cego esperava placidamente, a cabeça levantada, capturando sons. Motor, conversa, passos, buzina. E o cego sorria como quem vê algo que os demais não notam; talvez as primeiras notas escapando do violino que um rapaz começara a afinar dentro da estação.
Do lado de fora eu andava e observava os prédios. Uma igreja, prédios espelhados de gente de negócio, comércios informais, padarias de esquina com mesas na calçada, postos de gasolina. Escola alemã. Supermercado, lotérica, papelaria. No fim da rua uma feira, e então: cheiro de pastel, gosto doce de morango, ácido do abacaxi, cheiro de peixe. O rapaz do alho que oferece o produto sem olhar nos olhos e depois desvia da gente como quem foge do diabo. Bom dia, morena; bom dia, menina: mantenho os fones de ouvido mesmo sem música. Uma velha japonesa passa lépida com o carrinho cheio. 

quarta-feira, outubro 05, 2016

Mar aberto, mar adentro

Lugares: sempre sonho que estou em mar aberto, por vezes me afogo. Fato é que é sempre um fascínio, o sublime, o imensurável, o temor. Um lapso no tempo e a onda me cobre, enorme, escura, profunda, no sonho sinto a textura da água. É o chamado retorno ao seio do mundo; um chamado de retorno, bem sei. A onda indo e vindo no corpo, a cabeça pende pra trás, o mar é uma coisa descabida.
Uma vez, em Florianópolis, fiquei ilhada com outras pessoas após uma trilha mal-sucedida. Chovia, não havia como retornar, estávamos despreparados - de chinelo e passávamos frio. Um barco buscou aos poucos as vinte pessoas na mesma situação que eu, e nada até então me preparara para a sensação de estar levemente à deriva em mar aberto, um barco minúsculo na imensidão profunda feito boca da noite, as ondas tocavam a beirada do barco, mar revolto, o barco balançava, a distância entre a beira da onda e a beira do barco diminuía ferozmente. Pessoas vomitavam, sentiam vertigem. Lembro de pensar que facilmente poderíamos morrer ali. O barco foi contornando a praia, a encosta montanhosa apareceu imponente: o que antes era prainha agora era verde que descia até tocar o mar, verde-azul, azul escuro. Nós, o mar, o mato, o céu. Eu nunca vou me esquecer do impacto disso, da dimensão do meu tamanho ínfimo, da minha existência frágil, naquele sem-fim. Meus olhos enchem dágua como se eu estivesse lá ainda agora.