sexta-feira, julho 22, 2016

Fragmentos: A fabricação da memória

Lendo A morte do pai, de Karl Ove, considerei já o início digno de observação: vale a pena se deter nas páginas iniciais sobre a morte. 

Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para

A morte: Karl Ove destaca os dois lados desse fenômeno, a saber, a morte em si, como entidade, como representação, a que aparece nos noticiários, que ronda o cotidiano e que pagamos por tabela para acompanhar em diversas manifestações midiáticas; e a morte física, o cadáver que choca e que deve ser imediatamente tirado de cena, do alcance do olhar, uma espécie de insulto. Entre estes dois lados parece não haver ligação, entre a morte sem peso, sem profundidade, imagem pairando na tela, palavra MORTE, e o cadáver, o corpo morto, material a ser transportado e aniquilado urgentemente; daí que atribua à morte um papel ambíguo.
Quando a morte ressurge no livro, agora encarnada na morte do pai do protagonista, traz consigo outro aspecto que chama atenção: a fabricação da memória. Prestes a tomar um voo para acompanhar os processos do enterro, no saguão do aeroporto surge a lembrança do pai numa ocasião da infância. Ocorre uma breve retrospectiva do que acontecera entre aquela lembrança e o momento da morte. De súbito, porém, surge ao protagonista a lembrança do rosto do pai desta vez caracterizado num ambiente específico e acompanhado da descrição dos trajes e do contexto. Mas a imagem não parece corresponder à nenhuma situação real.
Se não era uma lembrança, era o quê? - questiona Karl Ove.

A fabricação da memória é um tema interessante. Penso que é comum termos dúvidas sobre a veracidade de certas lembranças, mas algo me intriga especialmente: tempos atrás lembro de ter lido acerca de memórias compartilhadas por diversas pessoas sobre fatos que não existiram. É desafiador pensar na reprodução de algo que não existe - nesse sentido, falaríamos antes de produção. Pode-se pensar que a imaginação, enquanto capacidade re(produtiva), deve operar uma espécie de síntese entre as estruturas de conhecimento comuns a todos e os fatos empíricos, o que levaria a crer que todos os participantes dessa imagem não-existente fabricada poderiam, então, ter experimentado algo muito particular, um arranjo específico dos dados empíricos, uma influência enviesada, o que quer que seja que os permitisse criar algo até então inexistente.

Não avanço muito no assunto, mas ele me persegue em fragmentos por dias até terminar a leitura. E continua enquanto mergulho em outros temas, enquanto vivo e falo da vida, justamente como instância de unificação.