terça-feira, janeiro 03, 2017

Poesia no KZ

Como é possível surgir - em meio ao trabalho, ao gás, à morte, à fome - falha e discreta poesia? Primo Levi mostra o italiano ao Pikolo, esta espécie anacrônica de office boy e estagiário, declamando a Divina Comédia, recitando o inferno dantesco no inferno dos homens. Tem urgência de explicar, traduzir; ele, que vencia os dias sem visão de largo alcance, sem pensamento que não o provisório, e regozijava da espera, de não ter que chutar para longe as horas, agora tinha pressa: é preciso que se compreenda o sentido até então não-desvelado para ele mesmo do Canto de Ulisses e da anunciação da sua morte. 
Há o tempo dos homens livres, o tempo dos condenados em nível que língua alguma é ou será capaz de exprimir, e o tempo da poesia. 
"Para os homens vivos, as unidades de tempo têm sempre um valor, tanto maior quanto mais elevados são os recursos interiores de quem as percorre; mas para nós horas, dias, meses fluíam lentos do futuro para o passado, sempre lentos demais, matéria vil e supérflua de que tratávamos de nos livrar depressa"