sábado, outubro 17, 2015

Tornar-se aquilo que se via no outro

Um exercício de paciência, de confiança, de esperança, de disponibilidade. Não é dom ou talento - é esforço, atenção, pensamento. Ensinar é uma escolha, uma atividade, não é algo dado, presenteado de cima ao nascer. Ao menos não para mim.
Hoje, enquanto cozinhava, me lembrei de um episódio ocorrido há uns quatro anos: encontrei no mercado um colega que à época era professor e encerrara o trabalho naquele dia; morávamos perto, fomos embora juntos e muito provavelmente por educação ele me chamou para subir no seu apartamento. Na hora não pensei na pertinência do convite porque tinha uma queda gigante por ele, mas tão logo entramos, percebi a fome que o dominava, aquela fome que não deixa pensar, falar, só deve ser urgentemente saciada. Sentado à minha frente comeu vorazmente enlatados diversos: milho, ervilha, atum ou sardinha, todos misturados entre gemidos de satisfação, um prazer quase sexual que, para falar a verdade, não cheguei a presenciar nele outra vez - nem mesmo quando tempos depois chegamos ao ato em si.
Pois que então nessa sexta-feira, enquanto preparava minhas aulas, me peguei abrindo latas de comida e misturando tudo junto a alguns legumes. Um estalo na mente e de repente eu era ele ali: professor particular, cursando mestrado, deslocando-se pela cidade durante a semana, engolindo alguns sapos e questionando a si mesmo. Eu percebi hoje, nitidamente, o quanto naquela época este modo de ser me fascinava, tão solto no mundo, sem CLT, quase sem patrão, sorvendo os teatros de São Paulo volta e meia com algumas cervejas e uma cabeça muito aberta. Me tornei o que admirava. E continuo a admirar o que agora sou?